O PESTE
Macondo,
11 de abril de 2020
Acordo às seis horas da
manhã, contra todos os meus hábitos e princípios e verifico que ainda é
domingo. Estou preocupada com a chegada da peste às comunidades, algumas também
conhecidas como favelas, onde mais da metade da população não tem água encanada
enquanto a mídia nos suplica intermitentemente que lavemos bem as mãos, durante
vinte segundos cada uma. O ministro da saúde, em cadeia nacional, informa que
está providenciando a higienização e saneamento de uma comunidade inteira, que
ainda não pode dizer qual é, o governador do estado diz, em entrevista, que
desconhece o plano, o presidente da república, em pronunciamento, afirma
categoricamente que se trata apenas uma gripezinha e convoca, via redes
sociais, uma passeata a favor do fim do confinamento e da volta ao trabalho,
depois apaga a mensagem, e um grupo de seguidores, de carros blindados,
máscaras, luvas e seguranças armados, fazem uma pequena carreta em apoio à
volta dos outros ao trabalho. O governador do estado afrouxa o isolamento de
cento e cinquenta municípios, fazendo com que trabalhadores voltem a girar a
economia, surgem dois casos em um dos municípios liberados no mesmo dia, forçando
o governador a voltar atrás e jogar a responsabilidade da decisão para os
prefeitos.
Os idosos são obrigados por
lei a ficar em confinamento e, simultaneamente, há uma campanha de vacinação
contra gripe, na qual a última idade tem prioridade e se amontoa em filas ao
sol, todos espremidos uns contra os outros, no momento em que estamos sendo
orientados a ficar a dois metros de distância entre todas as pessoas que não
moram conosco, as vacinas não são suficientes ou nem chegam, e os velhos,
aproveitando a oportunidade única, talvez última, de saírem de suas casas, são
forçados a voltar outro dia, mais cedo, se ainda estiverem vivos, para
alcançarem as primeiras doses.
O presidente faz o quinto
pronunciamento desde o início da peste, dizendo que respeita a autonomia de
prefeitos e governadores e que as decisões são de responsabilidade deles,
acrescenta que o governo federal não foi consultado sobre a amplitude das medidas,
fala ainda sobre os projetos na área econômica que estão sendo adotados, como o
auxílio emergencial para mendigos moradores de rua, instruídos a seguirem o
minucioso passo-a-passo de cadastro no site oficial, pela internet, em seus
próprios computadores, e habilitarem-se a receber as seiscentas patacas do
benefício, mediante a criação de uma senha alfanumérica, com cinco dígitos, e
quatro caracteres.
O presidente diz que
conversou com médicos, pesquisadores e chefes de estado de outros países, e
defende o uso da clorofila para tratamento da peste. Antes do pronunciamento ir
ao ar, o ministro do supremo tribunal celestial havia proibido o presidente de
suspender medidas adotadas por governadores, milicianos e prefeitos sobre
isolamento social, quarentena, funcionamento de escolas, fechamento do comércio
e circulação de pessoas, entre outros mecanismos eficazes para a redução do
número de infectados e de óbitos, como demonstram a organização internacional
de saúde e vários estudos técnico-científicos, que o chefe da nação desconhece.
A mídia divulga um novo
perfil nos institutos de pesquisa: os eleitores arrependidos do presidente, dos
quais setenta e dois por cento apoiam as decisões presidenciais, com a nítida
intenção de reduzi-los a cada dia, como se arrependimento fosse critério de
pesquisa passível de verificação séria.
Capas de chuva são usadas
por profissionais de saúde em lugar de aventais, e água de coco substitui
sangue nas transfusões, conforme recomendação do Presidente de Macondo. Corpos
mortos pela pestilência são trocados e as famílias enterram seus cadáveres sem
poder vê-los nem suspeitar que a pilha do necrotério não possui mais etiquetas
de identificação individual, separados apenas em quatro tamanhos: P, M, G, e
GG, e entregues a familiares uns dos outros, para que seja acelerada a saída
dos defuntos e liberadas vagas para novos falecidos que chegam a cada minuto,
evitando o inevitável: cremá-los em fornos coletivos, nem nomes nem preces,
durante a noite, às escondidas.
Astronautas higienizam a
entrada da maior comunidade de Macondo
posando para fotos enquanto ruas, becos e ruelas escada acima continuam
acumulando lixo, pessoas, barracas de alimentos e objetos virulentos no chão
sujo que os próprios moradores tentam varrer à exaustão, com vassouras de cabo
quebrado e pás furadas pelo tempo.
A prefeitura coloca guaritas,
guardas e grades no calçadão da orla para inibir a prática de exercícios,
passeios de bicicleta e com animais de estimação e quem não obedecer pode ser
advertido, multado ou conduzido a uma delegacia.
Caminho lentamente pelo
meu quarto pequeno, com medo de levar um tombo, torcer um pé, cortar-me ou dar
uma cabeçada no momento em que o mundo inteiro constrói às pressas hospitais de
campanha e cemitérios clandestinos.
A mídia martela noite e
dia a orientação para ficarmos em casa, informa que a frota de veículos
públicos foi reduzida, enquanto apresenta imagens de trens, barcas, ruas e
ônibus superlotados, todos ignorando a orientação para que passageiros não
viagem de pé. Metade das mulheres do país e alguns homens aprendem a
confeccionar máscaras de pano para sair às ruas e não serem contaminados, lojas
disponibilizam palitinhos descartáveis para que os usuários digitem sua senha
no cartão sem tocar o teclado, já que é por meio das mãos e das vias aéreas que
se transmite a pestilência, estou neste momento de máscara e luvas, cercada por
recipientes com álcool em gel.
Funerárias e coveiros
enriquecem, cidades cavam imensas valas comuns aguardando os mortos enquanto
multidões se aglomeram para comprar peixes e ovos de Páscoa.
Hoje é dia santo e estou
muito feliz, tenho noventa e nove anos e moro há trinta num asilo público, nasci
nas ruas, fui prostituta, vivi grande parte da minha vida numa casa de tábuas
sustentada por palafitas em cima de esgotos pestilentos, sem calçamento nem luz
elétrica e, pela primeira e única vez, serei entrevistada em cadeia nacional,
junto a moradores de rua, detentos, camelôs e prostitutas sem trabalho, muito
feliz porque finalmente o país inteiro vai nos ver.
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