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21/06/2020

O Peste (conto de pandemia)


O PESTE
Macondo, 11 de abril de 2020
Acordo às seis horas da manhã, contra todos os meus hábitos e princípios e verifico que ainda é domingo. Estou preocupada com a chegada da peste às comunidades, algumas também conhecidas como favelas, onde mais da metade da população não tem água encanada enquanto a mídia nos suplica intermitentemente que lavemos bem as mãos, durante vinte segundos cada uma. O ministro da saúde, em cadeia nacional, informa que está providenciando a higienização e saneamento de uma comunidade inteira, que ainda não pode dizer qual é, o governador do estado diz, em entrevista, que desconhece o plano, o presidente da república, em pronunciamento, afirma categoricamente que se trata apenas uma gripezinha e convoca, via redes sociais, uma passeata a favor do fim do confinamento e da volta ao trabalho, depois apaga a mensagem, e um grupo de seguidores, de carros blindados, máscaras, luvas e seguranças armados, fazem uma pequena carreta em apoio à volta dos outros ao trabalho. O governador do estado afrouxa o isolamento de cento e cinquenta municípios, fazendo com que trabalhadores voltem a girar a economia, surgem dois casos em um dos municípios liberados no mesmo dia, forçando o governador a voltar atrás e jogar a responsabilidade da decisão para os prefeitos.
Os idosos são obrigados por lei a ficar em confinamento e, simultaneamente, há uma campanha de vacinação contra gripe, na qual a última idade tem prioridade e se amontoa em filas ao sol, todos espremidos uns contra os outros, no momento em que estamos sendo orientados a ficar a dois metros de distância entre todas as pessoas que não moram conosco, as vacinas não são suficientes ou nem chegam, e os velhos, aproveitando a oportunidade única, talvez última, de saírem de suas casas, são forçados a voltar outro dia, mais cedo, se ainda estiverem vivos, para alcançarem as primeiras doses.
O presidente faz o quinto pronunciamento desde o início da peste, dizendo que respeita a autonomia de prefeitos e governadores e que as decisões são de responsabilidade deles, acrescenta que o governo federal não foi consultado sobre a amplitude das medidas, fala ainda sobre os projetos na área econômica que estão sendo adotados, como o auxílio emergencial para mendigos moradores de rua, instruídos a seguirem o minucioso passo-a-passo de cadastro no site oficial, pela internet, em seus próprios computadores, e habilitarem-se a receber as seiscentas patacas do benefício, mediante a criação de uma senha alfanumérica, com cinco dígitos, e quatro caracteres.
O presidente diz que conversou com médicos, pesquisadores e chefes de estado de outros países, e defende o uso da clorofila para tratamento da peste. Antes do pronunciamento ir ao ar, o ministro do supremo tribunal celestial havia proibido o presidente de suspender medidas adotadas por governadores, milicianos e prefeitos sobre isolamento social, quarentena, funcionamento de escolas, fechamento do comércio e circulação de pessoas, entre outros mecanismos eficazes para a redução do número de infectados e de óbitos, como demonstram a organização internacional de saúde e vários estudos técnico-científicos, que o chefe da nação desconhece.
A mídia divulga um novo perfil nos institutos de pesquisa: os eleitores arrependidos do presidente, dos quais setenta e dois por cento apoiam as decisões presidenciais, com a nítida intenção de reduzi-los a cada dia, como se arrependimento fosse critério de pesquisa passível de verificação séria.
Capas de chuva são usadas por profissionais de saúde em lugar de aventais, e água de coco substitui sangue nas transfusões, conforme recomendação do Presidente de Macondo. Corpos mortos pela pestilência são trocados e as famílias enterram seus cadáveres sem poder vê-los nem suspeitar que a pilha do necrotério não possui mais etiquetas de identificação individual, separados apenas em quatro tamanhos: P, M, G, e GG, e entregues a familiares uns dos outros, para que seja acelerada a saída dos defuntos e liberadas vagas para novos falecidos que chegam a cada minuto, evitando o inevitável: cremá-los em fornos coletivos, nem nomes nem preces, durante a noite, às escondidas.
Astronautas higienizam a entrada da maior comunidade de Macondo  posando para fotos enquanto ruas, becos e ruelas escada acima continuam acumulando lixo, pessoas, barracas de alimentos e objetos virulentos no chão sujo que os próprios moradores tentam varrer à exaustão, com vassouras de cabo quebrado e pás furadas pelo tempo.
A prefeitura coloca guaritas, guardas e grades no calçadão da orla para inibir a prática de exercícios, passeios de bicicleta e com animais de estimação e quem não obedecer pode ser advertido, multado ou conduzido a uma delegacia.
Caminho lentamente pelo meu quarto pequeno, com medo de levar um tombo, torcer um pé, cortar-me ou dar uma cabeçada no momento em que o mundo inteiro constrói às pressas hospitais de campanha e cemitérios clandestinos.
A mídia martela noite e dia a orientação para ficarmos em casa, informa que a frota de veículos públicos foi reduzida, enquanto apresenta imagens de trens, barcas, ruas e ônibus superlotados, todos ignorando a orientação para que passageiros não viagem de pé. Metade das mulheres do país e alguns homens aprendem a confeccionar máscaras de pano para sair às ruas e não serem contaminados, lojas disponibilizam palitinhos descartáveis para que os usuários digitem sua senha no cartão sem tocar o teclado, já que é por meio das mãos e das vias aéreas que se transmite a pestilência, estou neste momento de máscara e luvas, cercada por recipientes com álcool em gel.
Funerárias e coveiros enriquecem, cidades cavam imensas valas comuns aguardando os mortos enquanto multidões se aglomeram para comprar peixes e ovos de Páscoa.
Hoje é dia santo e estou muito feliz, tenho noventa e nove anos e moro há trinta num asilo público, nasci nas ruas, fui prostituta, vivi grande parte da minha vida numa casa de tábuas sustentada por palafitas em cima de esgotos pestilentos, sem calçamento nem luz elétrica e, pela primeira e única vez, serei entrevistada em cadeia nacional, junto a moradores de rua, detentos, camelôs e prostitutas sem trabalho, muito feliz porque finalmente o país inteiro vai nos ver.


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