A
BARCA
Gloria Horta
Abro os olhos e estou na imensa sala de uma casa de
madeira, deitada, com muitas pessoas ao meu redor, um pouco distantes. Uma
mulher, sorrindo, me diz:
- Bom dia, Maria. Que seja alegre o seu despertar.
Ainda sonolenta, tento sentar-me lentamente. A mulher
me ajuda, e diz:
- Fique tranquila, você está bem e nós estamos aqui
para ajudar.
Limpo a garganta e olho em volta. Há dezenas de pessoas
olhando para mim, algumas de cabeça branca, outros jovens, e muitas crianças,
homens e mulheres. Todos vestidos de branco.
- Onde estou?
- Você está segura, diz a mulher, bem de saúde. Pode
nos dizer quais as suas últimas Lembranças? Sem pressa.
- Lembro que há uma pandemia. Fugi de casa porque não
suportava mais viver trancafiada no apartamento com meu padrasto. Ele....
Sinto vontade de chorar e vergonha de contar, mas digo,
baixinho:
- Desde a morte de minha mãe, vivo com este homem. Ele
bebe muito, e me olha de um modo estranho. Parece doente, mas não quer procurar
um hospital. Tenho medo de ser atacada ou contaminada.
Tomo fôlego, e continuo, com a voz fraca:
- Sentia medo, a qualquer momento podia tentar abusar
de mim, ou ser violento. Via em seu olhar. Ouvia, mesmo durante a noite, sua
tosse intermitente. Não tenho família nem a quem recorrer. Acho. Com a
pandemia, as pessoas estavam receosas de receber outras em casa. Tentei pedir
ajuda a conhecidos, mas todos foram reticentes. Acho. Não me lembro a quem pedi
ajuda, nem quem eram meus amigos.
Tento recordar, faço um esforço:
- Fiz minha mala e abri a porta para fugir, estava
febril e tossia, senti uma zoeira na cabeça, a vista ficou turva, e acho que
desmaiei. E acordei aqui. Onde estou? Quem são vocês?
- Somos pessoas dispostas a ajudá-la. Meu nome é Vicentina.
Outra mulher se aproxima, e Vicentina diz:
- Essa e Maria Augusta, ela cuidará de você.
Maria Augusta sorri, sorrio amarelo de volta.
Olho para a janela atrás das pessoas, e estamos cercadas
de mata verde, o sol está nascendo, ouço barulho de pássaros e água correndo.
Não me lembro de ter estado neste lugar antes. Pergunto:
- Há quanto tempo?
- Muito, ela responde, apertando minha mão.
Estou impressionantemente calma, ajeito-me e percebo
que meus cabelos estão enormes, mas limpos e sedosos. Também estou vestida de
branco, como todos. Minha pele está bem cuidada, mas muito branca, não tenho
mais nenhuma marca de biquíni. Sou a mesma pessoa, mas pareço outra. Tão leve e
angelical que penso que talvez não queira sair nunca mais daqui. Não sinto a
dor nas costas que me acompanhou durante anos. Nem a aflição no peito, que
recordo, mas como um fato longínquo no tempo.
Respiro fundo e insisto:
- Como vim parar aqui?
Maria Augusta olha-me nos olhos e explica, lentamente,
como se estivesse dando o tempo necessário para que eu apreendesse tantas
informações:
- Selecionamos muitas pessoas para serem isoladas e
permanecerem saudáveis e vivas após a pandemia. Você foi uma delas. Todos aqui
não tinham parentes e estavam de coração aberto para viver uma vida diferente.
Como você pode ver, escolhemos pessoas idosas, para garantirem a transmissão
dos saberes, jovens em idade de reprodução, e crianças abandonadas. Foi preciso
ter certeza de que não dariam pela falta de vocês.
Sinceramente, não acredito em nada disso. E nem me
importo. Sem pandemia e sem padrasto, no meio dessa gente calma, tanto faz como
cheguei aqui.
Maria Augusta para por um instante, e as pessoas vão se
sentando à minha volta, sorrindo para mim, nitidamente com o intuito de me
acalmar. No entanto, estou calma.
Tento sorrir de volta, estou com a boca seca, peço água
e bebo um copo grande, para tomar tempo. Maria Augusta pega o copo de volta e
me oferece uma fruta, que não reconheço. Faz um sinal com a cabeça para os
presentes e ouço, em várias línguas, compreendendo todas:
- Fique bem.
- Não se preocupe.
- Estamos salvos.
- Também despertamos confusos como você.
Olho para Vicentina, e murmuro, gaguejando:
- Estou entendendo tudo.
Ela sorri e me diz:
- Enquanto você dormia, aprendeu muitas coisas novas,
idiomas, maneiras de plantar e colher, receitas saborosas, marcenaria,
Filosofia, Economia, e por aí vai.
Estou paralisada, realmente busco em minha memória, e
encontro muitos saberes que, antes de desmaiar, não conhecia. Fico pasma.
Perplexa, talvez seja a palavra exata. Toco meu corpo, sinto-me viva e sou
capaz de ver o sol está mais alto lá fora. Ninguém está de máscara no rosto. Eu
já estava me acostumando a ver apenas os olhos das pessoas nas ruas. Durante
muito tempo, era como se usássemos burcas. Eu lembro muito bem. De todas as
cores e muitos modelos, customizadas, discretas, bordadas, fluorescentes,
teatrais, transbordando criatividade. E originais, já que cada pessoa podia
costurar ou encomendar a sua própria. Mesmo com tanta tristeza, as máscaras
davam às criaturas um ar divertido.
Levanto-me lentamente e caminho até a janela, para
certificar-me de que ainda tenho movimentos. Lá fora, vejo uma mata verde
espessa, pássaros e borboletas de variados tamanhos. Inumeráveis colinas e,
mesmo a distância, enxergo casarões nos cumes, muitos, a perder de vista, bem
distantes uns dos outros. Pássaros, lagos com cisnes diferentes dos que
conheço, ou seriam patos? Outros estranhos animais voadores. Água corrente por
todos os lados, em pequenos riachos e lagoas.
Lembro: na pandemia, os animais silvestres e selvagens passaram
a andar pelas ruas, enquanto nós permanecíamos em casa, enjaulados, com medo do
vírus. Como um zoológico às avessas. Tínhamos medo uns dos outros, e um pouco
de fome, a comida era escassa. Muitos moradores de rua foram instalados em
hotéis de luxo, velhos abandonados em asilos foram recolhidos e adotados por
famílias bondosas, ricos isolaram-se em iates, casas de campo ou navios. A
memória é nítida, como é nítido o medo que eu sentia do que poderia acontecer
comigo, cada vez mais isolada do mundo e refém daquele homem bruto e doente que
eu detestava.
Mas na rua também víamos muitas pessoas mal vestidas e
desleixadas, não sei se deprimidas, ou cansadas de lavar e passar roupa. Como
estará minha aparência? Pergunto:
- Tem um espelho aqui?
Vicentina faz um sinal com a cabeça, e Maria Augusta me
conduz pela mão e, todos juntos, vamos para a sala ao lado. Um salão de dança,
como muitos que já vi, com espelhos e barras. Olho-me por inteira, e pareço
bem. Estou um pouco mais gorda, mas minha musculatura não dá sinais de ter
ficado tanto tempo parada. Apenas meus cabelos estão longos demais, e a pele
muito clara, isso me torna uma pessoa que sou eu, mas também não sou mais. Indago,
apreensiva:
- Quantos anos tenho?
- Os mesmos que tinha quando chegou. O tempo não passa
aqui do mesmo jeito que no seu mundo.
Começo a rir, de nervoso e deboche:
- Aqui não é meu mundo?
- Não, responde uma criança com olhinhos puxados de
índia, numa língua diferente que, misteriosamente, entendo. Alguns adultos sorriem
e fazem sinais para que a criança se cale.
É claro que estamos no mesmo mundo. Faço um ar de zombaria
e digo:
- Sei. Vou fingir que acredito.
- Vamos conversar, diz Maria Augusta, enquanto todos
sentam-se em roda, sempre sorrindo para mim, com a nítida intenção de manter-me
calma.
Sinto um ligeiro tremor e uma vontade imensa de chorar.
Lembro que meu padrasto chegou a tentar me agarrar à força, mas estava muito
bêbado e fraco e, apesar dele ser muito mais alto e forte que eu, consegui
empurrá-lo e trancar-me em meu quarto. Sim, foi aí que decidi ir para as ruas,
preferia o risco do vírus ao risco do estupro. Digo:
- Estou me lembrando de uma coisa muito ruim. Meu
padrasto, ele...
Maria Augusta me interrompe:
- Calma, apagamos as lembranças desagradáveis, mas sempre
deixamos preservado o momento em que vieram para nós. Você esquecerá. Seu
padrasto faleceu há muitos anos, você não está mais em perigo.
Todos ficam em silêncio, como se já conhecessem o
procedimento. Então eu me assusto:
- Mas eu tenho minha memória intacta!- digo,convicta.
- Não, Maria, você esteve sob efeito de uma longa
hipnose. Todos aqui passaram por isso. As experiências traumáticas e
desagradáveis foram apagadas. As recordações inúteis desapareceram de nossas
mentes, fatos que nos fizeram sofrer sem agregar nenhum ensinamento, pessoas
que nos fizeram mal, mas que não fazem a menor falta na nossa história. Indago:
- Uma lavagem cerebral?
E acrescento que não me sinto sem memória. Como podem
selecionar o que é bom e o que não é nas minhas lembranças?
Antes que me respondam com respostas evasivas,
continuo:
- Ainda tenho o apartamento? O lugar onde eu morava?
Vou voltar para lá?
Maria Augusta diz, sempre com voz mansa.
- Não, Maria, não existem mais apartamentos, agora há
casas com jardins, e você terá a sua. Sem prédios superlotados, as epidemias
desapareceram completamente. Não foi suficiente construir hospitais e abrigos,
foi necessário, em todo o seu mundo, desamontoar as pessoas, e colocá-las de
volta de onde nunca deveriam ter saído, em casas arejadas em pequenos municípios.
É isso, minha querida, a cidade grande foi um plano que não deu certo. Houve
uma descentralização, me entende?
Não, não entendo. Por que se refere ao “meu mundo”,
como se houvesse outro? Não vou insistir nesse assunto, sei que estou viva,
percebo pelo ar que respiro, pela temperatura amena. Dou um longo suspiro,
muito longo mesmo.
- Vamos fazer assim, diz Maria Augusta, vamos comer,
estamos todos com fome, e depois eu explico tudo que você precisa saber. Só
pense uma coisa, você está bem e entre amigos. Embora não conheça essas
pessoas, elas te conhecem muito, cuidaram de você durante anos, acredite em
mim. Ou você não estaria em plena forma após esse sono tão longo.
Concordo com a cabeça e, aos poucos, vamos em direção a
um outro lugar onde há uma mesa grande no centro, e um farto café da manhã. O
silêncio termina, e as pessoas começam a conversar entre si, as crianças a
brincar e correr, os idosos mais devagar, os jovens rindo e falando quase todos
ao mesmo tempo, cada um num idioma diferente. Todos, inclusive eu, entendem-se
perfeitamente. De todos os sustos que estou levando nesse estranho despertar,
este é o mais espantoso: entendo todos as línguas. Há frutas que desconheço,
mas não comento, limito-me a experimentá-las, pensando que talvez tenham
tirado, sem querer, as frutas da minha memória. Como saber o que esqueci, se
não me lembro? Difícil acreditar nisso.
Antes de sentarmos à mesa, um homem alto, bonito e
barbado, diz para todos:
- Podem arrumar-se.
Colocam-me sentada à cabeceira da mesa, todos
desaparecem por alguns instantes, e voltam vestindo roupas distintas. Trajes
tribais, saias longas, batas, shortinhos, camisetas, umas formais, outras bem
informais para meu gosto. Tenho a certeza de que estou com pessoas de todos os
países. Voltam diferentes, personalizados, e eu rio com os penteados, os
brincos, os tecidos, de diferentes épocas e lugares do meu mundo. Sorrio com
esse pensamento. É meu mundo, sim, o que via nas ruas e nas revistas e filmes,
antes da pandemia, antes dos mascarados.
Esforço-me para ficar calada, apesar das mil perguntas
que giram na minha cabeça. Os assuntos sobre os quais conversam são os mais
variados: fofocas, receitas, comentários sobre colheitas, plantas medicinais, e
até sobre o tempo. Será que amanhã vai chover? Gostou da cor do meu cabelo?
Você não sabe da maior: estão programando mais um casamento coletivo. E
adivinha! Levy se casará com Nini. Antenor com Cléa. Eu já sabia, diz alguém,
estava na cara que ali rolava alguma coisa. Estavam sempre juntos.
- Eu vi eles se beijando, diz uma criança pequena,
querendo participar da conversa dos adultos.
Novamente alguns adultos encaram a criança marota, para
tentar silenciá-la.
Sejam quem forem essas pessoas, são conversadoras e
animadas. Mesmo perplexa, não consigo deixar de rir dessa cena inesquecível. Atônita,
mas sentindo-me em casa. Na verdade, acho, estou em casa, já que tudo indica
que vivo neste lugar há alguns anos. Ninguém parece querer o meu mal, estou
segura. Confusa, mas segura. Não tenho medo de nada. Meu principal medo
desapareceu: a pandemia. Só isso importa agora. Posso abraçar as pessoas e
beijar, como antigamente. Poderei sair às ruas normalmente, e normalmente fazer
compras no supermercado, trabalhar, cuidar da minha casa, seja lá onde for.
Tenho plena convicção de que há uma vida normal à minha espera.
Sem me dar conta, já estou conversando com um homem da
minha idade, de cabelos longos e barbicha, elogiando a beleza desse amanhecer
avermelhado, com lua quase transparente desaparecendo enquanto o sol esquenta.
Vejo uma mulher bonita, que me lembra muito minha mãe
quando jovem, e desabo a chorar. Ela me olha de volta, com carinho. Sim, tenho
minhas lembranças. Todos ficam em silêncio, respeitando meu emudecimento. Tento
me justificar, e digo para todos:
- Minha mãe, ela faleceu na pandemia.
- Conservamos memórias de pai e mãe, diz uma jovem de
tranças enormes e ruivas.
E, tentando animar-me:
- Quer tomar um banho e trocar de roupa?
Aceito, e saio com ela, ainda fungando. Ela se
apresenta. Tem a minha idade e viveu a pandemia nos Estados Unidos, em
Michigan. Guarda lembranças ruins, mas evita acessá-las.
- Meu nome é Mary Catherine Smith, diz, dando-me um
abraço. Choro de novo, há tanto tempo não sentia o corpo de outra pessoa tão
perto. Nada do que está me acontecendo é mais espantoso que minhas últimas
lembranças de um Rio de Janeiro com ruas vazias de pessoas, animais passeando, esquilos,
saguis, patos, gansos, garças, cobras, javalis, cotias, pacas, tatus, porcos,
cavalos, e até leões foram vistos. Alguns
policiais mascarados, carros com pneus vazios, parques em total abandono, sacos
de lixo acumulados em algumas esquinas, e muita gente perambulando sem destino,
falando sozinhas ou chorando feito loucas, e sendo recolhidas por carros pretos
de chapa vermelha, levadas para abrigos, hospitais ou sanatórios, todos
superlotados.
- Acho que fugi de casa pensando em morrer, eu disse.
- Isso já ficou para trás, sussurra Mary, num inglês
perfeito que compreendo e domino perfeitamente.
Ela me mostra um imenso quarto de vestir, com roupas de
todo tipo, parecem usadas, mas estão novas. Escolho um vestido de malha preto com
bolinhas brancas, parecido com um que adorava. Experimento sapatos e acabo
optando por sandálias de dedo.
Pergunto para Mary, acho que com voz de criança:
- Eu desmaiei e vocês me pegaram, foi?
Ela cai na gargalhada, talvez pelo meu tom infantil.
- Maria, não se preocupe tanto com detalhes. São muitas
as informações que você ainda precisa e vai ter, mas aos poucos, cada coisa na
sua hora. Não sou eu quem vai te explicar como tudo acontece aqui. A
responsável por você é a Maria Augusta, vá conversando com ela.
Mary olha em volta, para ter certeza de que estamos
sozinhas, e sussurra, em tom confidencial:
- O sistema de esvaziamento seletivo de memórias não é
cem por cento eficaz. Acontecem muitos erros.
Fala mais baixo ainda:
- Estão sempre tentando aperfeiçoar. Sobram muitos
resquícios, e provavelmente é o único procedimento que não funciona exatamente
como gostariam. Tentam deixar intactas as lembranças do momento em que saímos
do nosso mundo, e apagar tudo que foi nocivo e não serve para nada.
Enquanto fala, Mary me guia para uma sala de aula
ampla, onde uma outra mulher de idade parece dar aula. Sento-me aos outros
“alunos”, que são muitos, e ouço:
- Pra quem não me conhece, especialmente vocês do
Brasil, sou Emília da Glória, do Rio de Janeiro, e por esse motivo fui
escolhida para a palestra de hoje. Tudo vai parecer uma loucura, mas aos poucos
será a coisa mais natural do mundo. Todos aqui passaram por esse um grande espanto.
E explica. O mundo inteiro estava se consumindo com
muitos desastres, ambientais e de saúde, a humanidade estava ameaçada. Drones
imperceptíveis sobrevoaram a Terra em busca de pessoas solitárias, dispostas a
viver uma experiência nova, pessoas que, como eu, como vocês, encontravam-se em
estado de total abandono. E foram escolhidas algumas centenas... centenas de
milhares. Ou milhões. Para serem cuidadas e darem continuidade à vida. Houve
muitas mudanças em todos os países. Todos. As principais foram o desmonte das
grandes cidades e das aglomerações. Fronteiras se quebraram e foi criada uma
nova forma de vida, possível. Vocês, escolhidos, foram trazidos por nossos
mestres e, enquanto dormiam um sono profundo, receberam aulas e instruções em
estado de inconsciência, com o intuito de se prepararem para regressar à vida.
Finjo que acredito. Emília da Glória continua:
- Priorizamos idosos com sabedoria, teoria ou prática,
povos das florestas e de tribos com conhecimento de plantas, médicos,
professores e técnicos nas mais diversas áreas, jovens sensíveis e com
capacidade de reprodução, e crianças sem família, abandonadas em abrigos, e também
alguns moradores de ruas e periferias, enfim, pessoas cujo desaparecimento não
seria notado.
Aceno, concordando, mas não estou convencida. Emília da
Glória percebe minha expressão de desconfiança, acho, mas segue em frente:
- Há, diariamente, viagens de regresso e chegada, de
vários lugares diferentes, temos tecnologia para isso. Muitos já voltaram para
a cidade ou país que escolheram, saíram daqui em famílias recém-criadas. Vocês
escolhem onde querem viver daqui para a frente. São livres. Escolhem o país e a
família aos quais desejam pertencer. Alguns preferem ficar, temos sempre muito
trabalho. É necessário cuidar dos que ainda estão em estado de sono profundo e
aprendizado, e precisam estar limpos, alimentados, massageados, enfim, com
todos os cuidados que requer uma pessoa acamada. Mais cedo ou mais tarde, todos
voltam à vida. Olha para mim, e diz:
- Maria, logo chegará a sua vez. Só depende de você.
A aula é pública, mas Emília da Glória olha para mim.
Tudo faz sentido, menos estar em outro mundo. Talvez seja uma maneira
metafórica de nos fazer entender que a vida será outra, muito diferente após a
pandemia. Que teremos que abandonar todas as nossas crenças e apegos, e
formarmos uma nova consciência. É com esse pensamento que aceito as explicações
de Emília da Glória, e sou invadida por uma ponta de felicidade. A aula é
interrompida para o almoço, quando de novo compartilhamos uma mesa farta, com
alimentos saborosos e desconhecidos, que saíram da minha memória, ou não
existiam no Brasil.
De tarde, mais palestras, sobre temas que eu conhecia
de nome: Ecologia, solidariedade, subsistência, manejo da terra, dicas de corte
e costura, um apanhado geral de tudo que precisamos saber para sobreviver, é o
que dizem.
Anoitece quando somos dispensados para o banho, trabalho
e atividades lúdicas.
- Disposta a trabalhar comigo? – pergunta Mary.
- Em quê?
- Cuidaremos dos adormecidos, topa?
Concordo e ela me leva com ela para uma gigantesca sala
branca com berços de prata, fechados como casulos, com alguns sinais iluminados
no que parece ser a tampa. Uma névoa branca permeia o ambiente. Amplas janelas
com cortinas esvoaçantes igualmente brancas. Um silêncio de surdos profundos.
Mary aproxima-se do primeiro, clica num ícone e, lentamente, a tampa se abre.
Estou arrepiada. Vejo uma criança negra, cerca de treze
anos, que ainda dorme. Pareceria morta, se não fosse a expressão de
tranquilidade. Escovamos seus cabelos, lavamos seu corpo pequeno, exercitamos
suas pernas, braços, pés, cabeça. Seguimos um protocolo que Mary me ensina,
cautelosa e meticulosamente. Choro de novo, disfarçadamente. Quantas crianças terão
sido levadas pela pandemia? – penso.
Na parte de dentro do casulo, há uma espécie de
capacete branco, feito de um material que desconheço ou não reconheço. Mary me
ensina como encostá-lo na testa da menina durante alguns minutos em que,
silenciosamente, observo. Mary observa um relógio com alarme projetado na
parede, e sussurra:
- Assim esvaziamos a memória. Dois minutos por dia é
suficiente. Um segundo a mais ou a menos e corremos o risco de apagar algo
importante, ou deixar o que não mais importa.
Substitui o capacete branco por um azul, e murmura:
- Agora estamos injetando conhecimento. Não me pergunte
como, aprendi assim, repito, e vem dando certo. Uma espécie de tradição, a
gente aprende e repassa sem questionar.
Assim vamos, de leito em leito, até chegarmos à última
criança. Após observar atentamente este procedimento, eu seria capaz de
repeti-lo sem erro, acho.
Terminada a tarefa, saímos e finalmente vamos para o ar
livre. Já é noite. Fico mais feliz ainda ao sentir a brisa, nem quente nem
fria, amena como a temperatura.
Mary levanta-se e eu a sigo. Fazemos uma longa
caminhada até chegarmos à cachoeira pequena, e meus olhos enchem-se de lágrimas
novamente. Na pandemia, eu me questionava, angustiada, se ainda veria alguma de
perto.
E quando olho para o céu, eu não reconheço posição das
estrelas. Não vejo as Três Marias, nem Vênus. Não fico impressionada nem um
pouco. Sei perfeitamente que o céu é diferente em diferentes continentes. Mas
ainda é o meu mundo.
Sentamos numa grande pedra, olhando para a água
cristalina. Mary conta-me sua vida, uma vida bastante banal, mas com histórias
de abandono e solidão, muito parecidas com a minha. Talvez pior. Ela morava num
lugar que chama de orfanato, mas não sei o que é. Onde ficam crianças
abandonadas ou órfãs, ela me explica.
- Ou crianças de rua, como havia em seu país.
Tenho a impressão de ver a lua nascer de novo, mas não
comento, estou com fome, cansada e confusa pelo dia tão intenso. Voltamos, mas
não para a grande casa. Mary me guia para um lugar descampado, imenso, e sorri
para mim como se estivesse prestes a me revelar uma grande surpresa.
- Chegou a hora, fala, sorrindo com um ar de marota.
Melhor ver com seus próprios olhos que receber explicações em salas de aula.
Ri, satisfeita, parece orgulhosa de ser a responsável por mim nesse momento.
De longe, ouvimos vozes cantando, instrumentos tocando,
uma festa, com certeza.
Pessoas vêm caminhando por diversas trilhas, em direção
ao gramado. Vão, em silêncio, formando um círculo. Encontro e reconheço as
faces já familiares do meu grupo.
Parece uma despedida. Sete brasileiros são abraçados e
beijados por todos, recebem salvas de palmas e despedem-se, alegres,
confiantes, e com lágrimas nos olhos, provável saudade antecipada dos amigos
dali.
Então surge no céu uma nave gigante e, delicada como um
beija-flor, pousa na grama e abre suas portas, silenciosamente. Quatro moças,
dois rapazes, três idosos e cinco crianças afastam-se de nós e formam um grupo
que se dirige à nave. Logo surgem mais grupos, vindos de outras colinas, de todos
cantos, e se juntam a outros que vão partir. É o que parece.
Tremo dos pés à cabeça, como estivesse vendo um Deus na
minha frente, e observo esse caminhar sereno em direção à imensa embarcação. De
dentro do pássaro gigante, que parece também um avião redondo, saem homens e
mulheres bem idosos e se colocam enfileirados, para receber os que para lá
caminham.
Uma voz, que todas as casas de todas as montanhas
conseguem escutar, diz:
- Hoje é dia dos brasileiros. Ou melhor, dos que
escolheram o Brasil para retornar. Seus habitantes chegam e retornam ao final
deste ciclo de vinte e duas luas duplas. Bem-vindos os que chegaram e boa
viagem aos que vão.
Há um silêncio ensurdecedor, Mary não move um músculo.
Estou arrepiada e trêmula, sou cética, mas meus olhos não me enganam. A voz
continua, no mesmo tom manso:
- Orbis
Esopianeta Pythonissam 2020, de Lyrica
20MG, tem o prazer e o privilégio de hospedá-los. Boa sorte a todos.
Disparo perguntas como rajadas e Mary ri, somente ri,
não responde. Paro, reflito e pergunto:
- Mary, os que saíram daqui escolheram, por livre e
espontânea vontade, o Brasil para voltar?
- Simmmm!!! Responde, alegre. É isso.
Arregalo os olhos, assustada, e grito, meio esganiçada,
quebrando o silêncio:
- E o Bolsonaro??????????
Todos se entreolham intrigados, há um burburinho,
sobrancelhas franzidas. Perguntam, depois de vasculharem as memórias:
- Bolsonaro é quem?
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