Hoje, dia 31 de outubro de 2050 bisa
faz cem anos.
Preparamos uma grande
festa para toda a família, mas ela amanheceu caduca. Acordou antes das cinco e
fez uma super faxina no apartamento, depois arrumou armários, rasgou
fotografias antigas, pediu compras por telefone, pendurou uma garrafa de álcool
em gel na porta de entrada, cobriu todos os móveis com lençóis brancos, ligou
para o porteiro e ordenou que ninguém entrasse no apartamento, exceto moradores.
Liguei para minha mãe, que ligou para o médico que disse para que não
interferíssemos. É normal pessoas em idade avançada retrocederem no tempo e
guardarem apenas memórias antigas, ele disse. Mas, e a festa?
Quer dar festa?
perguntou minha bisa, pode dar, mas cada convidado tem que tirar toda a roupa
no quartinho dos fundos, colocar tudo num saco fechado, tomar um bom banho,
passar álcool no corpo e vestir uma roupa limpa. Ninguém se aproxima de
ninguém, a distância mínima é de um metro. Cada um traz seu copo e talheres,
descartáveis. Se seguirmos as orientações da OMS, aceito a festa, mas com pouca
gente. Aglomeração não pode, disse ela. E arrematou, autoritária e doce, como
sempre: ninguém sobe de elevador, é um ninho de bactérias.
Tentamos explicar à
bisa que a pandemia tinha acontecido nos anos vinte e que agora não precisamos
mais ter todos esses cuidados, basta a máscara. Mas minha bisa não arredou o
pé: O que vocês querem? Uma pandemia familiar? Eu sou grupo de risco, se entrar
alguém aqui, eu me tranco no meu quarto.
Desmarcamos. Bisa
continuou sua nova velha rotina: lavou
as compras: potes de requeijão, temperos, material de limpeza, garrafas de mate,
frutas, nada entrava mais no apartamento sem passar pela higienização metódica
dela. E tinha que higienizar tudo de máscara e luvas pra não respirar o vírus. Parecia
mais jovem, do tanto que trabalhava. Pediu por telefone provisões para muitas
semanas. Lavou tudo, até as embalagens, e lavava as mãos de hora em hora. A qualquer momento pode acontecer uma contaminação ou
uma chamada de vídeo, dizia, enquanto passava batom, sem acertar direito o
tamanho da boca agora pequena.
Às dezoito horas em ponto correu lentamente sua
corrida velhinha até a janela e gritou com sua voz fraquinha, mas convicta:
- Fooooora, Bolsonaaaaaro!
E bateu panelas, fazendo um barulho tão alto
que nem parecia que vinha de braços e mãos tão frágeis. Bisa ficava na janela fotografando tudo o que
considerava “uma aglomeração”. Vou denunciar, dizia, com voz firme. Estão
colocando em risco a vida das pessoas.
Meus irmãos e meus tios tentaram visitá-la, mas
ela agradecia a visita pelo olho mágico
e, se trouxessem presentes, comidinhas ou até mesmo correspondência da
portaria, ela pedia que deixassem do lado de fora da porta, e só abria depois
que eles iam embora, de luvas, e com álcool em gel em punho, passando até nas
contas e boletos. O pior é que me obrigava a fazer o mesmo, eu não podia mais
receber meus amigos em casa, e quando eu saía, na volta eu era obrigada a me
desinfetar toda, ou ela tinha uma crise de pânico. E quando eu saía, ela
recomendava: cuidado com os animais selvagens. Estava doida. Lavava minhas
máscaras e deixava de molho por horas na água sanitária, fiscalizava toalhas,
panelas, armários, enquanto eu sofria por ver minha bisa querida, tão lúcida há
tão pouco tempo atrás, perder o juízo.
A situação estava ficando fora do controle.
Minha avó me explicou que a pandemia foi um choque na vida de todos os humanos
do planeta, e não só dos brasileiros. Que até então ninguém usava máscaras. Que
antes era comum pessoas sem máscaras andarem juntas em elevadores, lojas
superlotadas, blocos de carnaval, tudo era aglomeração sem perigo. Estranho
ouvir isso, eu que praticamente nasci de máscara, que vi poucas bocas na rua,
que desde pequena guardo na lembrança os olhos das pessoas. A máscara, para
mim, é como o sutiã, a gente usa e pronto. Não passa gripe, não respira o ar
poluído das grandes cidades, e ainda combina com a roupa.
Minha avó foi mais além e me contou que quando
era jovem, o mesmo acontecia com o cigarro, que pessoas fumavam nos elevadores,
dentro dos aviões, nas salas de aula, nos bares fechados, nos carros sem ar
condicionado, nos ambientes de trabalho e, pasmem, era considerado chique, havia anúncios de
cigarro na televisão, e os maços eram vendidos abertamente em qualquer
jornaleiro, bar, ou restaurantes. Achei que estava exagerando, mas fingi que
acreditava pois já estava cansada de viver no passado. Chorei muito, submetida
a tanta paranoia.
E não era só isso. Bisa tinha pesadelos que
estava numa piscina sem máscara, tentava
sair e não conseguia. Ou que queria sair e não achava as máscaras, ou que
encontrava um bando de pessoas sujas dentro de sua sala. E despertava no meio
da noite chorando, apavorada. Bisa não saía mais de casa, nem para suas
caminhadas matinais, pegava o sol da manhã na janela, e nem ao cinema, que ela
tanto gostava de ir, ia mais. Ela celular, televisão e supernet o dia inteiro.
Uma noite vasculhava o apartamento em busca de
alguma coisa, perguntei o que era, e ela disse: uma caneta. Caneta, bisa? Pra
quê? Temos o teclado virtual holográfico. Mas ela queria porque queria uma
caneta. Deus do céu, onde encontrarei uma caneta para minha bisa? Será que
alguém ainda fabrica? Consegui um lápis com um idoso que morava no nosso
condomínio e desenhava à mão, como antigamente. Bisa sossegou. Desandou a
escrever como eu nunca tinha visto. Escrever é realmente algo muito
interessante, mas dá muito trabalho corrigir. E onde guardaríamos tantos
papeis?
Daí vieram outras manias. Comprava comida e cozinhava feito doida, como
se estivesse em guerra e corresse o risco de faltar mantimentos. Fazia pão em
casa, doces os mais variados, congelava
tudo e inscrevia-se em todos os cursos on line que apareciam em sua linha do
tempo, no tal Facebook, que ninguém usava mais há muitos anos. Depois se
esquecia dos cursos e continuava sua imensa lista de inscrições.
E não foi só. Pegava roupas que pouco usava,
demanchava e confeccionava máscaras de todos os modelos e tamanhos, queria
distribuir para os pobres. Eu tentava explicar que todos já tinham. Mas bisa
não se convencia. Se por um lado eu a via feliz, ocupada, por outro me
entristecia o fato de estar caduca.
Vamos caminhar bem cedinho? Tentei, mas ela não
queria se arriscar, dizia que era grupo de risco e que não havia respiradores e
leitos para todos, que davam preferência aos jovens. E lamentava a triste sorte
dos médicos, que tinham que decidir quem morre e quem vive, na distribuição de
vagas e respiradores nos hospitais.
Ontem à noite, ela me chamou com toda a calma, disse
que não sabia em que mundo eu vivia, que queria muito que eu a ouvisse sem
interromper. Sentamos, uma ao lado da outra, fiz o silêncio prometido, e
escutei (gravando), então ela disse:
- “Ouvi falar da epidemia pela primeira vez no
início de março de 2020. Tinha um encontro de constelação familiar e fomos, a
turma toda do curso, normalmente, apenas evitando beijinhos no rosto, brincando
e cumprimentando-nos com os pés, ainda achando graça. No final demos muitos
abraços uns nos outros. Eu tinha uma hóspede em casa, e recebemos várias visitas durante o fim de
semana. No domingo, uma pessoa veio ao meu apartamento e disse para minha
hóspede voltar correndo pra cidade dela pois e breve as estradas poderiam ser
fechadas e ela, impedida de voltar. Ela
fez as malas depressa e foi-se embora, eu não disse nada, mas achei um certo
exagero. Daí começaram a chegar as notícias de fora do país e ficou mais claro
que era uma pandemia e que o mundo inteiro estava sofrendo.
Fiz compras pelo telefone e guardei mantimentos
não perecíveis que duraram meses, paguei no cartão, com medo de faltar comida,
encomendei algumas máscaras com a costureira minha vizinha e ela ria de mim,
assim como as pessoas que me viam de máscara na rua. Poucas semanas depois,
estava quase todo mundo mascarado, e agora a mascara é obrigatória.
Na primeira semana, acordei antes do sol nascer,
e caminhei no parque perto daqui, sentindo-me estranha naquele lugar, antes tão
cheio de vida, completamente deserto. Animais diferentes saíram de sues esconderijos,
ouvíamos mais cantos de pássaros, até camundongos mínimos que nunca haviam sido
vistos por ali.
Antes de pandemia, eu estava com crises de
pânico, não conseguia sair às ruas sozinha, e quando tentava, sentia ânsias de
vômito e era obrigada a voltar pra casa. Com a maioria trancafiada dentro de
casa e as ruas vazias, confesso que até melhorei e comecei a sair para o parque
calmamente, como se o mundo estivesse finalmente no mesmo fuso psicológico que
eu.
As pessoas, que antes mal telefonavam, só mandavam
mensagens por whatsapp , começaram a fazer vido chamadas, e isso virou um hábito, eu conversava por vídeo com outras pessoas
isoladas sozinhas em seus apartamentos, e assim, por videochamadas, comemoramos
três aniversários e o dia das mães.
Mas os artistas resistem, e fazem lives
diariamente, todos correndo e aprendendo a usar recursos de internet que estavam,
antes, ainda encubados. Houve um boom de cursos, palestras, aulas de yoga,
ginástica, história, música, tudo on line. O mundo virou uma telinha.
Corri para a cozinha, onde quase não entrava, e
passei a cozinhar, como não fazia há décadas. Tive o privilégio de viver num
tempo em que as empregadas domésticas eram mão de obra barata, podíamos pagar,
inclusive muitas moravam com a gente e só iam pra casa de quinze em quinze
dias, outras vieram do Ceará diretamente para nossas casas e lá moravam, tinham
filhos às vezes, traziam outros parentes e a gente ia empregando nas casas de
familiares. Portanto, eu mal frequentava a cozinha. Passamos, todos, a cozinhar,
aprender novas receitas, arrumar armários, e fazer aquelas coisas todas que
nunca sobrava tempo pra elas. Arrumar armários, rasgar velhas fotografias,
tornar-se mais leves, despegando- nos de livros que jamais voltaríamos a reler,
e de roupas que jamais voltaríamos a usar, guardando-as só por apego mesmo.
Mas essa fase também passou e corremos para os
vídeos, filmes, séries, cursos on line, tentando ocupar-nos o maior tempo que
pudéssemos. Toda essa loucura com o país nas mãos de um presidente sem a menor
empatia com o povo, um homem que, ao ouvir o número de mortos aumentando
diariamente, disse: E daí? Não sou coveiro.
Isso nos deixa ainda mais inseguros. Todos os
dias a imprensa noticia mais quinze dias de isolamento social, fala em possível
lock down, mesmo que a maioria esmagadora da população não tenha a menor ideia
do que seja isso em inglês. Uns
governadores tentam flexibilizar as medidas de fechamento do comércio, outros
ignoram as medidas e acabam, eles mesmos, contraindo o vírus.
Tive fases de insônia, de choro, de depressão e
saudade dos amigos e da vida, acordamos sempre no dia de ontem, os prédios são
desinfetados, os porteiros usam obrigatoriamente máscaras, e alguns amigos
contraíram a doença, uns de modo leve e em casa, outros vindo a óbito.
Meu implante dentário provisório me causa muita
aflição, como deixar alguém mexer dentro da minha boca, se a doença é contraída
pela s vias aéreas? Se meu implante cair, ainda posso usar máscaras pra
disfarçar.
Pra me divertir um pouco, encomendei várias
máscaras para usar combinando com minhas roupas, mas como quase não saio de
casa, apenas me visto, faço uma selfie engraçada e volto a usar as roupas de
andar em casa, sempre de batom, pois são comuns agora as chamadas de vídeos. As
mulheres estão com as raízes dos cabelos brancas, aquelas que nunca pintaram o
cabelos sozinhas, o que não é o meu caso, que pinto de preto desde os dezoito
anos. Mesmo assim , encomendei tinha na farmácia e chapisquei o banheiro todo.
Há dias em que meu apartamento fica um brinco,
insisto em fazer a cama diariamente, como se fosse entrar alguma visita de
repente no apartamento.
Depois relaxei. Amanhã faço a cama, digo pra mim
mesma, ou depois de amanhã, ou sábado, se sábado vier.
Uma sensação de morte, de luto, de guerra, de
fim de mundo.
Tentei olhar
a pandemia com um olhar histórico e assisti muitas palestras sobre
outras epidemias, até descobrir que não foram os europeus os que dizimaram os
índios das Américas, invadindo o mundo novo. Quem destruiu a os habitantes das
Américas foi a varíola. Reli A Peste, vi a série Panemia, no Netflix, reli
Sapiens, qualquer coisa que me desse um olhar histórico sobre esse momento
difícil que estamos vivendo.
Aqui e ali, notícias de animais selvagens, ou
ocultos, surgindo nas ruas desertas. Tucanos, papagaios e pássaros, até
iguanas, camelos, macacos,e onças.
Recebo diariamente vídeos de macacos em
piscinas de condomínios urbanos, de famílias inteiras de antas passeando
tranquilamente por ruas desertas.
Alguns artistas brasileiros faleceram até
agora, a maioria pelo vírus. A secretária da cultura, uma tal Regina Duarte,
que foi eleita a Namoradinha do Brasil da Ditadura, primeiro desapareceu do
mapa, deixando a classe artística em polvorosa, teatros e cinemas fechados sem
data para reabrir, depois deu uma entrevista desastrosa dizendo:
- O mundo me ama!!!
Sobre as mortes, de milhares de brasileiros e
de alguns artistas, disse, entre outras asneiras:
- Todo mundo morre. Eu não quero ser um
obituário. Vamos ficar leves.
Devia estar drogada. Quinhentos artistas
fizeram uma carta de repúdio à anciã com trejeitos de menina, mas ela ainda não
se deu conta de que entrou num barco furado, e que é odiada hoje pela direita,
pelo centro e pela esquerda, por artistas e não artistas, por olavistas e não
olavistas, perdendo a chance de entrar para a história como atriz. Ingênua a
ponto de achar que ainda é secretária da cultura, quando já há um bonitão bolsomínon
fazendo as sobrancelhas para ocupar o lugar dela. Um garotão debochado de olhos
azuis, jovem e fortinho de academia, do jeito que o presidente gosta.
Só a Regina não sabe, mas já está num
ostracismo de dar dó.
Não tenho dó, nem dela nem de nenhum outro
bolsomínion, nem da imprensa, ninguém teve a sensibilidade de enxergar o traste
que elegeram, com o conluio da imprensa e dos odiantes do PT. Não sabiam o
tamanho do monstro. Eu sabia, tenho vídeo filmado e postado antes das eleições
alertando para o perigo e pedindo para que os eleitores de Bolsonaro saíssem da
minha vida, mesmo da vida virtual.
Perdi o saco de cozinhar, e comecei a pedir
comida por delivery, num momento em que almoçar nos restaurantes a quilo estava
tornando-se um hábito tão comum que muita gente já nem tinha mais fogão em
casa. Houve uma guinada, os restaurantes, todos, fecharam, e hoje estamos
cozinhando, ou pedindo quentinhas. Os maridos tiveram que colaborar nas tarefas
diárias, os bons casamentos se fortalecem enquanto os casamentos estragados
começam a feder, com o casal trancafiado junto dentro de apartamentos pequenos ou
casas gigantescas.
Deixamos de ver os amigos ao vivo, mas
refizemos contatos com pessoas antigas, que não víamos há séculos, e estamos em
conato com muito mais gente. Eu fico de olho nas pessoas mais solitárias ou
mais sensíveis e sempre pergunto como elas estão, e faço graça falando das
minhas máscaras novas e da minha nova burca e me acham doidinha, com isso riem
e se divertem.
Minha meta diária é manter-me o maior tempo que
puder de pé, qualquer coisa é motivo para eu me jogar no sofá até sentir
câimbras nas pernas, de tanta imobilidade.
O pior é que não tenho planos para o fim da
pandemia, estou aposentada, filhos criados, estudos completados, e pânico. O que farei dos meus dias e das
minhas horas quando a pandemia passar? Acho que continuarei confinada e em
isolamento, como já estava antes.
Passei pela fase da negação, quando não
acreditava na proporção planetária da pandemia, passei pela fase da
produtividade, quando queríamos ocupar todo o nosso tempo disponível, lendo,
estudando, enfim...’fazendo alguma coisa’.
Superei a fase da tristeza profunda e da
profunda paranoia, parei de chorar diariamente e a ter ânsias de vômito todas
as manhãs. Tive também um período em que passava o dia inteiro ao telefone,
falando sem parar com as pessoas, mesmo as praticamente desconhecidas. Pintei
algumas paredes com a tinta que tinha em casa, tentei tocar violão de novo,
reli os principais livros que moldaram meu pensamento e nortearam minha vida.
Dormi a tarde inteira diversas vezes, com ou sem remédio, acompanhei notícias o
dia inteiro, virei noites, desliguei televisões e Internet, desliguei-me de
tudo, passei a ler as notícias apenas uma vez por dia, passei por todas as
fases, e os domingos eternos não passavam. Sempre que acordava, dava de cara
com o dia de ontem. Se eu fosse Heráclito, diria que eu me banhava no
mesmíssimo rio toda manhã, há meses.
O mais desconcertante é que o Brasil é o único
país no mundo inteiro que as primeiras páginas dos jornais e as chamadas do
noticiário não são somente a pandemia, mas os desastres do presidente e sua
equipe. Não só ignora tudo que acontece à sua volta. Pior. Quer que a economia
ande, que o comércio abra, contra todas as recomendações de todos os órgãos e
institutos de saúde. E contraria governadores, prefeitos, médicos, enfermeiros,
ignora a pane do sistema de saúde, a falta de leito e respiradores, tudo. Vive
numa bolha à parte, só pensa em si mesmo e na sua família, quase todos
implicados em algum crime, de desvio de dinheiro a assassinato e formação de
milícia.
Temos, neste momento, um STF enfraquecido, sem
moral, sem autoridade, todo o sistema parece estar nas mãos desse lunático. Diz
barbaridades, palavrões, ofende a imprensa,
as mulheres, defende torturadores, nunca imaginei viver isso. Participei
do Movimento Diretas já, após a ditadura, e hoje vejo esse louco, eleito pelo
povo, ser defendido por um grupo grande de pessoas. Incompreensível tudo isso.
Para não enlouquecer, vivo um dia de cada vez,
remando de acordo com a maré. Critico e xingo o presidente pelas redes sociais
porque sei que ele se baseia nelas. É o
que posso fazer, por enquanto.
O número de mortos e infectados só faz crescer.
O número de leitos disponíveis nos hospitais só faz diminuir. Como posso,
agora, relaxar meus cuidados?
O que me consola é que eu era jovem na
revolução sexual e agora estou velha na pandemia. Já pensou que horror o
contrário? Velha na revolução sexual, sem poder dar pra ninguém e jovem na
pandemia, tendo que ficar trancafiada em casa, sem nem poder beijar na boca.
Semana passada foi a entrevista infeliz com a
secretária da cultura, cantou o hino da ditadura, balançou a cabeça pra lá e
pra cá jogando os cabelos, pensando que ainda tem trinta anos, com aquela
vozinha de moçoila irritante. Não quis homenagear os mortos famosos, artistas
como ela, atores, músicos, intelectuais que morreram, teve a audácia de dizer
que a secretaria dela não é um obituário. Disse que o presidente é muito
educado, divertido, e outras asneiras. Os jornalistas imprensaram a Regina
contra a parede, ela chamou os seguranças, se descabelou toda e a entrevista
foi interrompida no meio da primeira aparição pública dela, após a posse. No
final do vídeo dá até pra ver uma mãozinha que ia tampar a câmera. Disse que
morrer é normal. Só faltou completar com um E daí? , como o presidente. Mal
sabe ela que já subiu no telhado, como se dizia naquela piada antiga. Não dura
mais nada no cargo, será sua derrocada, poderia ter terminado de envelhecer
como a namoradinha do Brasil, mas optou por morrer em vida como a noiva mórbida
de um presidente que vai entrar pra História como o mais canalha. Perdeu o
contrato com a Rede Globo, um contrato de cinquenta anos, pra você ver como ela
é velha. E vai passar o resto da vida ganhando a pensão do pai militar, como
marido ruralista, olhando bois no pasto. Nem os bolsomínions genuínos querem
ver a cara dessa desalmada. Que papel ridículo, que falta de noção. Que
desgosto pro nosso Brasil, não é, querida? Um país tão rico, tão alegre e
promissor, apesar das desigualdades imensas que estão vindo à tona. Essa é a
minha esperança. Que tudo isso que estamos passando sirva para alguma coisa.
E não falo só do preço que pagamos em vidas,
mas também em tristeza, lágrimas, saudades, depressões, um preço que nunca
quitaremos. Quem está vivo agora nunca vai esquecer tanta miséria humana.
Miséria pior do que a de falta de recursos, pior que a fome e o abandono. Um
desprezo imenso pela vida, isso é o que estamos presenciando. Sei que o
desprezo sempre esteve aí, mas agora ele é celebrado e postado nas redes. E que
susto levamos, vendo pessoas das quais gostávamos defenderem a abertura do
comércio e justificarem a perda de vidas, desde que o capital não deixe de
girar. Se morrerem trabalhadores, há muitos desempregados para substituí-los, é
o que pensam. E abrem covas no país inteiro. Covas e mais covas, para o
afrouxamento do distanciamento social, do confinamento. De doer, isso.
Outra coisa que me consola é que eles,
presidente, ministros, secretários, governadores, deputados, senadores,
prefeitos, todos brigam entre si. Quando eu era mocinha, achava que tinha que
pegar em armas e fazer a revolução. Hoje, que estou velha, é diferente. Não
vamos pegar em armas. Os políticos se devoram entre si e posso assistir
sentadinha no meu sofá, comendo pipoca, a derrocada de cada um deles, mas até quando?
Tenho mais de sessenta anos, será que a pandemia vai durar muito tempo? Estarei
viva no final de tudo?
Estou
muito triste. Há quatro meses não vejo minha filha nem minha neta. Imagina o
que é isso? Minha neta já cresceu oito centímetros e eu não vi. E o que é pior:
não sei quando voltarei a vê-las. Nem sei se voltarei a vê-las. É como se eu estivesse em outro mundo, uma
sensação de morte muito, mais muito triste. Viveremos uma “nova normalidade”?
Como será esse normal, estarei nele? Tenho muito medo. Mas sei que o medo é
normal. Quem não está com medo nesse momento está fora do ar, negando, doente.
Quero abraçar minha filha, minha neta, ela só tem onze anos. Queria tanto vê-la
adulta, mocinha, vou sobreviver a tudo isso? Nem tenho medo de morrer de vírus,
mas de tristeza. Tenho medo do
presidente, tenho medo de seus eleitores, estão todos soltos, andando pela rua,
com tanto ódio no coração. Bolsonaro vai acabar com o Brasil. E você, quem é
você? Obrigada por me escutar. Você me lembra muito minha neta, que saudade
dela”, concluiu. Não fossem acontecimentos de décadas atrás, parecia
perfeitamente lúcida.
Olhei nos olhos dela, e disse, com calma:
- A senhora é minha bisa querida, tudo isso já
passou. Minha avó tá ótima, minha mãe também. A senhora acabou de completar cem
anos! E com saúde, com amor. Bolsonaro já morreu há décadas. Houve muitos
presidentes depois dele.
Minha
bisa balançou a cabeça e me olhou com seus olhos de gelatina, olhos poídos de
olhar, amorosos. Não sei se me reconhece. Abraço-me a ela, que corresponde,
alisa meus cabelos, balança a cabeça e diz, com ares de senhora sábia:
- Bolsonaro? Morto? Tudo fake, minha querida, amanhã
ele ressuscita e desmente.
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