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08/04/2020

Diário de uma quarentena 001


#DiariodesessentenaGloriaHorta
24/03/2020
001.Querido diário. Bom dia. Há quanto tempo. Tenho uma notícia boa e uma ruim. A ruim é que o mundo está passando por uma pandemia. A boa é que estou me transformando numa excelente dona de casa. Coisa que nunca fui. Apesar de tudo, é bom reencontrar você.
Vamos ver hoje como será meu dia. Já lavei as compras: potes de requeijão, temperos, material de limpeza, garrafas de mate etc. O bunker tem provisões para muitas semanas. Depois vou regar as plantas, fazer tapioca e café e dar comida e água pra Tati. É minha gata. Também preciso recomeçar a aprender violão e rasgar fotografias.
Aceitei que sou idosa. Há uma campanha, que tentamos desobedecer, para que idosos, esses principalmente, não saiam às ruas. Preciso pegar dinheiro no caixa, mas estou com medo de sair com minha mecha branca.
Estou ouvindo o álbum branco dos Beatles.
Muitas transformações estão acontecendo comigo. Depois te conto. Agora preciso correr pois ontem esqueci de lavar as caixas de sabão em pó e as bananas. Vou passar batom e lavar as mãos, como tenho feito de hora em hora. A qualquer momento pode acontecer uma contaminação ou uma chamada de vídeo. Até já.

002.Querido diário: Boa tarde. O coroavírus curou meu pânico, Chato confessar isso. Parecia que o mundo andava às pressas, que se movimentava rapidamente, menos eu, meio confinada. Agora tudo ralentou, e estou junto comigo. Só por hoje não descerei para conversar com os porteiros. Um dia de cada vez. Sou grupo de risco. Na mesma semana, sou obrigada a ficar em casa e convocada a tomar vacina no posto cheio de velhinhos em fila. Fiz um frango que não ficou lá muito bom e que nunca acaba. Comprei tantos temperos que vão durar a vida toda. Vou tentar carne moída. Estou com os olhos marejados porque estou ouvindo Dear Prudence, dos Beatles, e fiquei comovida com a letra, principalmente naquela hora que diz: “Dear Prudente, wont you come out to play”. Natural. Vou jogar o lixo fora e em seguida tomar meu banho. Achava meu apartamento pequeno e agora, tendo que limpá-lo, cresceu bastante. Lavei as roupas pretas na máquina. Varri a sala por conta dos pelos da Tati (minha gata). Na minha frente, há uma pilha de lençóis limpos amassados. Será que terei que passá-los? Não sei onde a Rosana guarda o ferro. Toda hora ligo para a minha faxineira, tantos anos cuidando de mim e de minha casa. Ela está atendendo online, tipo teletrabalho. Aproveito o ensejo para agradecer a ela. Em uma semana não faço o que ela fazia em um dia. Pequei o violão e ressuscitei Canto de um povo de algum lugar. Não sei bem o porquê, lembrei do maestro Marcos Leite.Quando estiver bem ensaiado, toco pra você. Minha voz está entocada, meus dedos, frágeis, mas estou conseguindo fazer umas pestanas. A panela já está preparada na janela, à espera dos meus amigos longínquos. A hora mais alegre do dia. Meu batom está gastando muito rápido, estou sempre preparada para vídeochamadas. Meu sobrinho, que mora em Amsterdam, me chama todo dia. Meus amigos do curso de Constelação fazem encontros online pelo aplicativo. Vejo filhos e netos também pela telinha. E saboreio o canto da minha filha e do meu genro nas lives. Configurei o alarme pra não perder essa alegria diária. Vi pó na prateleira. E ainda nem consegui descongelar a geladeira. A violência doméstica aumentou em cinquenta por cento, segundo o jornal. Sugiro, comprovado o fato, que cada mulher ameaçada ganhe uma caixa de Dormonid pra colocar nas refeições do agressor. É o que podemos fazer por enquanto. Envenenar não vale. A roda da vida vai voltar a girar e será impossível esconder tantos corpos. Minha amiga Bete me ligou pra dizer que está gostando do diário. Disse que tem uma vassoura só dela, atrás da porta, pintada de rosa. Temos rido toda noite, como antigamente. Com a Leila, de longe, também falamos toda noite. Nossas lembranças são muito divertidas. Tenho dado risadas diariamente. Com Carlos e Sheila também. Não estou só no apartamento. Antes do lixo e do banho, vou cuidar das plantas na minha janela, que carinhosamente chamo de varanda ou jardim, pois crescem vertiginosamente. Há uma mandala grande e um livro pra terminar. Tenho dormido melhor agora que o mundo parou, e acordado mais cedo.Essa noite sonhei que as favelas e as comunidades davam um exemplo de cidadania e solidariedade, deixando os condomínios do asfalto pasmos.
Até de noite.

Rio, 25 de março de 2020
003.Querido diário: O perigoso presidente da república falou, em cadeia nacional, que estamos exagerando em insistirmos nas campanhas de não sair de casa. Acho que é uma espécie de Jim Jones americano, quer morrer ao lado de seus eleitores. Algumas favelas estão organizadas, a maioria, não. Tememos por um genocídio coletivo de pobres e bolsomínions. Toda noite tem panelaço. Tô tentando segurar a onda. Não pisei nem no corredor nos últimos dias. Meu porteiro preferido traz as coisas pra mim. Quero continuar viva, e confesso que tenho medo de sair à rua com minha mecha branca e ser apedrejada, vaiada, ou caçada pela carrocinha e virar sabão. Tenho mais de sessenta anos e estou obedecendo. Tenho medo de drones me filmarem na rua e minha família se afastar de mim. Se eu fosse sozinha no mundo, ia direto pro parque aqui perto, deserto.
Preciso levar o meu lixo e tomar o meu banho em seguida, tentar finalizar aquele peito de frango eterno que eu como e ele não termina. Não são tempos de se jogar comida fora. Tenho limpado a casa, mas, se essa pandemia demorar, vai ser preciso arrastar os móveis pra limpar embaixo. Combinei comigo assim: cada dia arrasto um pouquinho. Em algumas semanas, estarão todos fora do lugar, daí posso passar vassoura e pano e depois fazê-los retornar, sempre aos pouquinhos. Pode durar meses.
Acho que essa noite pode ter uma salva de palmas para as faxineiras, vou propor no Face. Esses, os maiores desafios da sessentena: manter a casa limpa e a mente sã. Quanto a exercícios físicos, tento me manter de pé pelo menos umas três horas antes de me jogar no sofá. É o máximo que consigo, por enquanto. Tenho muitos medos. De não conseguir nunca mais sair de casa no dia que esse pesadelo terminar, de continuar usando álcool em gel para sempre, de me dar uma louca e sair correndo até o mar e me jogar. Não consigo correr, então essa loucura tá descartada.
Medo do meu implante provisório cair e eu ficar de sessentena e com dente faltando, sem poder sequer fazer videochamadas. Tô escolhendo a música que vou treinar hoje. Pego meu álbum de música antigo, e ele é tão antigo que está datilografado ou escrito à mão, e já foi a tantos lugares que tem areia, páginas manchadas de chuva, uma folha, marcações de pessoas que há anos não vejo.
Iolanda, Ouça,Nature Boy, Let it be, Dia branco, No woman, no cry, Ovelha negra, Imagine, Xote da meninas, Vamos fugir,  Quereres, Scarborough Fair, Volver a los 17, A noite do meu bem, Estranha forma de vida, Sol de primavera, Love of my life, Cio da Terra, Drão, Nosso estranho amor, O que será que me dá, As rosas não falam, London London, Let it be, Shy moon, Gracías a la vida, Fogueira, Asa Partida, When I am sixty Four, Sound of  silence, Nowhere man, Shy moon, Canção da América, Sol de primavera, Nascente, Sandra, TODAS hoje me entristeceriam. Depois dos sessenta, é tanta lembrança junta na cabeça da gente, que é difícil seguir em frente desapegada e inteira, carregando a mala das nossas escolhas..
Os idosos estão presos, não só no apartamento, mas também na caixa de memória. Se alguém me dissesse, em 1979, que em 2020 estaríamos todos vivendo confinados numa pandemia, eu cairia na gargalhada. A vida era uma gargalhada de biquíni, batom e brinco, com muito sol. Tive sorte.
Estou nostálgica mas otimista. Esse pandemônio veio para nos curar, a todos e a Terra, tenho certeza. Tem pó na estante de livros da sala, tô vendo daqui. Desculpem, mudei o assunto, mas é tanto canto na sala que acho que nem vivendo cem anos trancafiada, conseguiria mantê-la um brinco.
Olho para a porta e imagino minha filha, meu genro, minha neta entrando, meus amigos, sobrinhos, primas, minha queridíssima faxineira. Estarei com cabelos brancos até a cintura? Estarei sã? A Terra estará salva?
Tenho que limpar o filtro, terminar o livro, decorar os acordes, passar um pano nas prateleiras, jogar fora o lixo, tomar banho e me arrumar pra falar com as pessoas queridas pelo novo aplicativo, e tentar terminar de comer aqueles imensos filés de frango, pra ter certeza que já é outro dia.
Preciso caminhar cantando pelo apartamento e tentar dançar ao som do Caetano Veloso, que está cantando no Youtube pra mim agora. Lave sempre as mãos, Caetano. Não saia de casa, Chico Buarque. Não conseguiria viver num mundo sem vocês.
Não sei se visto uma camisola, uma roupa bonita ou se fico logo pelada dançando, seria uma atitude divertida e rebelde. Como diz minha neta, “na dúvida, finja-se de louca”. Tá certa, é esperta. Antes de pegar o espanador, vou ouvir a mensagem dela de novo no whatsapp. E tentar preparar uma música pra de noite, mesmo que meio desafinada. Alegro algumas pessoas, com meus micos. Estão todos pagos. Como dizia Rita, já são parte do orçamento. Os micos me rejuvenescem.

Rio, 26 de março de 2020
004.Querido diário:
Décimo dia de quarentena. Segunda manhã com enjoos. De tarde, treino o violão e limpo uma prateleira da estante. Total quatro. Logo termino. Hoje me dei folga. Só lavando louça e pensando em pintar uma mecha de cabelo de azul, desbotou tudo. Há muitas formigas pequeninas no sofá, deve ter caído uma balinha embaixo, acho. E agora?
A escrita me pegou de novo e estou contente com isso. A arte é contagiosa. Leiam a mensagem que recebi no grupo, da Maíra Baky. Também conhecida como a palhaça Dotora Clô. Encantadora.
“Oi Glória 
Gosto de ler seus relatos, me fazem sorrir e chorar, nem sempre na mesma ordem.
Senti vontade de te responder. Como mensagens em garrafas, espero que chegue até você, ou a outro náufrago que possa nos resgatar. Quem sabe isso ajuda a tirar o tédio ou a tristeza da minha vida?
Houve uma época que eu quis ser escritora. Cheguei a fazer Letras. Tinha até um blog. Foi antes de fazer biologia, depois de largar a dança. E naquela época nem pensava em fazer teatro.
As voltas que Terra plana dá, não é mesmo? Eu era boa. Não me lembro porque desisti. Ah lembrei, eu achava mais importante ser cientista e pesquisar a vida. Devia ter continuado pensando isso, a essa altura estaria ajudando a entender como esse vírus funciona.
Mas eu era artista demais pra ficar trancada em laboratório. Uma vez eu fiz uma cagada, misturei as moscas, achei que tinha contaminado os repiques, tive que pedir ajuda pros doutorandos verem se os olhos vermelhos das moscas eram daquele jeito mesmo. Fiquei com tanta vergonha que sumi do laboratório e quase matei as moscas. Era minha responsabilidade. E achava pesado demais ser responsável pelas estirpes das moscas. Ah, se alguém me dissesse que eu seria responsável em 2020 por tantas pessoas numa pandemia... eu ia morrer de rir. Nunca quis me responsabilizar por nada nem por ninguém. Agora sinto que todos ao meu redor dependem de mim. Ainda não me acostumei com o papel de adulta da família. Preferia ser a filha adolescente. 
Hoje foi aniversário da minha mãe, apesar do risco chamei um Uber e fui até a casa dela com Tayná. Ajudei com compras, comprei um bolo, chamei algumas tias no computador pra elas se falarem.
Foi um dia bom.
Agora já voltei pra casa e estou triste porque não sei quando a verei novamente. Tenho medo por todas as pessoas. Na minha casa tenho uma idosa asmática. E minha filha, que tem alergia respiratória, mas a pediatra falou que não pode chamar de alergia antes dos cinco anos. 
Agora ela tosse de noite e eu fico surtada três dias direto, colocando a mão na testa dela, lavo mão e meço a temperatura com a mesma mão. Não sei se é certo fazer isso. Mas como saber se a pessoa tem febre sem colocar a mão na testa? Eu tinha quatro termômetros, você acredita que todos quebraram? Dois eram importados nunca foram usados. Devem ter sido comprados quebrados igual a essas “coisas da China”, ou esses produtos baratos do Paraguai. Outro, de mercúrio, Tayná quebrou. E um que estava funcionando, parou. Acho que a bateria acabou. Vou ter que arriscar minha vida de novo pra comprar um termômetro. 
Minha mãe tinha deixado “minhas coisas” pra eu trazer pra casa. Não sei onde enfiar tanta tranqueira. O espaço está cada vez mais apertado porque  eu tenho que tirar tudo do quarto da velha asmática por causa da poeira. Onde eu vou enfiar as coisas sem o quarto da bagunça?
Fica difícil se manter saudável assim.
Esse presidente maldito falando essas coisas me deixa muito preocupada. 
Sinto que chegamos no apocalipse... não sei se voltaremos a ter uma vida normal.
Estou tentando manter uma rotina saudável aqui, alimentação, exercício, meditação... muita conversa para lidar com as pessoas... o mais difícil é a saúde mental mesmo. Tem dias de muito nervoso, tem dias de tristeza. E outros que passam rápido. Ontem brigamos por causa da frigideira. Essa coisa diet de não usar nem azeite pra fazer os ovos... queria que a porra da nutricionista ensinasse a lavar a frigideira. Cada um que lave quando usar! 
Meu maior medo é matar alguém antes do vírus. Não. Meu maior medo é morrer de corona vírus. Não. Meu maior medo é eu pegar o vírus, carregar numa sacola, e entregar pra alguém dentro de casa. Alguém que eu quero que morra. Mas eu não quero que ninguém morra. Não de corona vírus. 
Ah, adorei saber que você toca tantas músicas. Quando puder canta Cio da terra, eu amava muito essa.
Beijo no seu coração. E relaxa, poeira não mata ninguém só velha asmática. Você tem asma?

Rio, 25 de março 2020
005.Querido diário: No dia 6 de março, viajei com meus colegas do curso de Constelação para Teresópolis, onde saudamos o sol, tivemos belas aulas e cantamos num sarau improvisado, felizes, apesar das dores de cada um. No dia 9 de março, eu estava com minha neta mais velha no show do Ordinárius Vocal, no Theatro Net. No dia 13, numa constelação com a Malu Palma, evitando beijinhos. No dia 16, comprando luvas, álcool gel e máscaras. No dia 23, pedi compras para o mês inteiro e hoje, dia 27 de março de 2020, estamos todos confinados em casa, apavorados com a irresponsabilidade de um presidente, eleito pelo povo, pelos que o escolheram e por aqueles que se abstiveram, não tendo a sensibilidade de perceber que um homem que defende abertamente a tortura e homenageia um torturador, boa coisa não poderia ser.
Acordei antes do sol nascer e pensei em fazer uma burca e sair de luvas e óculos escuros, atravessar a rua disfarçada e caminhar até o riacho do parque em frente ao meu apartamento, que até pouco tempo atrás eu me referia, como a maioria de nós se refere ao lugar onde mora como “casa”. Herança dos avós, talvez, antes dos arranha-céus que sangram as nuvens hoje.
Ouço música o dia inteiro e de noite, e quando ela para, ouço um zumbido nos ouvidos. Como quase todos, às vezes choro. Mas muitas vezes canto. Recuperei a escrita, pois só ela me salvou nos momentos mais difíceis. Escrevendo, transbordo, rio, reclamo, resgato minha alma, tão perdida. Sim, tenho medo do vírus. Mas tenho mais medo ainda de um presidente que saiu do exército por problemas mentais, que avacalha com estudantes universitários, professores, pesquisadores, governadores, médicos, OAB, STF, e abandona nosso país à deriva, preparando uma campanha que incentiva a população a sair às ruas para trabalhar, indiferente às mortes que ocorrem no mundo inteiro, e pior, ao colapso dos hospitais, já em estado de abandono antes da pandemia. Há países construindo, às pressas, mais cemitérios, outros onde os ratos atacam os moradores de rua em busca de comida, há médicos e outros profissionais da saúde adoecendo, há ruas vazias, mentes desesperadas, amigos infectados, uma luz de emergência acesa sobre o comportamento dos humanos nesse Planeta tão generoso. E o doente mental eleito nunca nos ofereceu uma palavra de esperança.
Há a tristeza de ver amigos com estudo apoiando o psicopata, contradizendo a verdade em que, inocentes, acreditávamos: que seus eleitores não tinham estudo e por isso se deixaram enganar. Vejo, tristíssima, antigos colegas de faculdade, companheiros de encontros musicais, uma médica infectologista, uma colega que viajava comigo nas férias há anos, excelente companhia, e até uma parente, criada com todo conforto e estudo, por um pai amoroso e com princípios, vejo gente com as quais convivi apoiando o genocida que deixa o país acéfalo. A incompreensão vem em dose dupla. O que me salva são os amigos, de verdade e virtuais, que compartilham comigo indignação e mensagens de esperança. A maioria da minha rede, de onde excluo, sem dó, os cúmplices da irresponsabilidade desse patético presidente.
A saudade é maior que o pânico, que o ódio. Mas não é maior que o desamparo dos desafortunados, que o abandono dos moradores de rua, que o descaso com os brasileiros que vivem em comunidades ou favelas sem água sequer para lavar a mãos. A saudade só não é maior que o tamanho do Planeta.
Hoje abri caixas de linha, peguei mandalas começadas e livros para reativar todas as artes possíveis dentro do apartamento. Gostaria de rasgar fotografias que ocupam muitas malas, caixas e gavetas, de um tempo no qual eram impressas em papel, mas não tenho coragem. Talvez me emocione em ver tanto passado guardado. Talvez aproveite a oportunidade para zerar a vida e recomeçar no novo mundo que talvez nos espere, ressignificado após pane do Planeta. Acontece que, sempre que rasgo fotografias de uma pessoa sumida no tempo, ela reaparece. Não sei se isso só se dá comigo. Então reflito. Talvez jogue fora as fotos daqueles que quero rever ao vivo e com saúde. E deixe quietos os fantasmas. O mesmo se dá com objetos: tinha dois tambores que durante mais de dez anos somente enfeitaram a sala. Num apartamento superlotado de enfeites, dei os dois de presente para pessoas queridas, e agora queria bater bem alto nos momentos de panelaço. Também joguei fora fotos de pessoas que haviam desaparecido até do Facebook, e elas, logo em seguida, me telefonaram.
Paro de pensar e vou para a cozinha, para máquina de lavar, para pia, para a vassoura, para os pequenos movimentos cotidianos que eu havia abandonado. O dia passa depressa, de noite tem panelaço, orações pela janela, confraternização a distância, o que me enche de alegria. Também fico feliz em ver minha filha e meu genro nas lives diárias, produzindo, sorrindo harmoniosos apesar do confinamento. Fico feliz em ler os poemas dos meus amigos do curso, todos estimulados pela força da alegria e da vida, que vai prosseguir em paz, tenho certeza, após essa tormenta.
Fico feliz durante as vídeochamadas e os longos telefonemas de amigos, dos que moram perto e dos que estão presos em outro país.  Fico feliz celebrando, mesmo que por aplicativos, os aniversários dos arianos que amo, pois tenho certeza que nosso reencontro nos trará maior consciência do quanto nos amamos. Minha filha mais velha fará quarenta anos na quarentena, mas eu fico feliz assim mesmo porque somos uma família forte, e estamos todos protegidos em casa, e ela é linda, forte, saudável, e só me dá orgulho e alegria.
Por vocês todos, fico em casa, varro o apartamento, passo batom todo dia, raspo as pernas, passo rímel e perfume, fotografo cantos e objetos bonitos que me cercam. Minha casa, minha cara.  Por vocês cuido de minhas plantas. Por vocês, lavo as mãos, não saio às ruas, protejo-me.
Por vocês quero a minha vida de volta, e melhorada, quero um planeta sadio e um mundo reinventado. O preço será alto para a maioria. Mas torço para que a pandemia seja um sintoma, e que a doença da Terra seja sanada. Incluindo os excluídos, equilibrando as relações, respeitando as hierarquias, concordando com o passado, e amando, não com o amor que adoece, mas com o que cura.
Dentro de mim há um mundo que não se contamina.
Até breve.

29 de março 20202. Acordei e é domingo de novo. Abro os olhos atemporais e penso nos meus compromissos. Nenhum. Lembro que estamos todos isolados dentro de nós mesmos e dentro de apartamentos. Escolho Djavan para essa manhã ensolarada em que o Planeta se embeleza, temporariamente livre de nós, o vírus planetário. As ondas vão e veem normalmente. Peixes, tartarugas, siris aproximam-se, felizes, da areia vazia.
Acordei às sete. Normalmente voltava a dormir de novo, mas agora é perigoso. A cama pode me abduzir. A carreata de direita em prol da volta ao trabalho, os pronunciamentos do encurralado presidente desta república, boneco inflável de posto de gasolina, a inércia do Congresso, do Judiciário, a panfletagem vazia dos governadores e prefeitos, tudo me enoja.
Ligo o piloto automático enquanto espero a fresta de sol, e varro, lavo, faço gelatina, pondo roupas na máquina, cada vez menos roupas, já que o não saio, que o mundo está fechado.
Fotografo cantos do apartamento e escrevo, alternadamente, esperando o rápido banho de sol. À deriva, não sabemos o que esperar. Estamos, todos, em plena ficção científica. Sonhei que uma pessoa querida tem febre e acaricia meu rosto, mas estou apavorada, e me afasto, culpada e triste. Olho em volta e há mandalas por fazer, batatas por descascar, livros por ler, mensagens para responder, dias sem fim para viver. Vou procurar alegria em algum lugar do confinamento. Regar plantas e dançar talvez, sejam boas ideias. Calma, me digo, o dia vai passar, assim como a vida e a pandemia.
Não sei se pinto o cabelo de azul ou mudo os móveis de lugar, para garantir que amanhã eu acorde num dia diferente. Minha janela tem grades. Olho, uma tentação, o aparelho de ar condicionado. Estou magra, quase não como, talvez pudesse escapar por ali e alcançar a marquise do prédio. Seria fácil retirá-lo, e se alguém me visse?
Ontem desci de máscara e luvas para o banho de sol na garagem do prédio e me deparei com dois policiais de bobeira na galeria de lojas fechadas, sentados em banquinhos e fazendo gazeta, só depois me dou conta. Na hora temo, penso nos meus cabelos brancos, no meu grupo de risco, na obsessão em mandar os idosos ficarem em casa, e pergunto, idiotamente: Posso pegar sol ali?
Sento no meu banquinho portátil, e peço ao porteiro para que tire uma fotografai minha, de longe, no celular dele. Vê se ficou bom, ele diz, trazendo o celular, e eu quase dou um pulo: Não chega perto! Digo isso, mas caímos na risada porque é patético, e eu sei que estou engraçada nessa fantasia enquanto ele se espreme nos trens para chegar à nossa portaria, e conversamos um pouco, de longe.
Isso é o que me ocorre. Agora preciso descer porque o sol chegou nos ladrilhos e eu não posso perder.
29/03/20. Tarde. Peguei sol e conversei com o porteiro. Ele tira outra foto minha no sol do ladrilho. Me manda por whtasapp, de longe. Ele me contou que o trem veio cheio. Ele diz que vivemos uma sucessão de domingos. Parece entediado na portaria vazia, na galeria fechada. Vou pedir a síndica luvas e máscaras pra ele. Ela me detesta. Fiscalizo o prédio, mesmo antes do pandemônio. Minha amiga vizinha me chama da janela dela, ri de mim, talvez, e combinamos de pegar o banho de sol juntas manhã, separadas por dois metros, claro. Me oferece caquis e ovos. Vamos rachar, é muito, ela diz. Uma desconhecida de outro prédio me vê nessa situação meio ridícula, meio cômica e triste. Ri e acena. Aceno de volta. Medo que todo o prédio resolva me imitar. Não há sol pra todo mundo. Tento pegar o sol discretamente, presidiária, interna mas inteira.
De volta ao apartamento, Ouço A Barca dos Corações Perdidos, o Auê. Recebo uma mensagem no grupo. Uma das colegas perdeu uma amiga de quarenta anos. É preciso muita música e muitos telefonemas pra espantar o medo. O arroz integral está no fogo. De sete às dez me dedico ao apartamento. Depois, banho de roupa e tudo, e este diário que me consola. Ontem dancei uma música inteira. Não sei se sou louca ou forte. Ou ambos. Fizemos uma reunião virtual para celebrar o aniversário de dois entes queridos. Nada de notícias, só de noite.
Programa para a tarde: aula no Instagran coma Duda Maia, palestra no Youtube com o Leonardo Sttopa, live do grupo vocal Ordinarius, onde vejo minha filha e meu genro todo dia, unidos e alegres, e divertidos, acalentando a solidão dos solteiros e das famílias. Ela menciona o aniversário do pai e deixa escapar lágrimas. Enxugo as minhas e corro para a penteadeira. Passo batom e rímel, penteio os cabelos de raízes cada vez mais brancas.
Um dia abrirei a porta de cabelos brancos até a cintura, sã e salva? O mundo enterra seus mortos, enquanto o Planeta agradece. Mas os vivos se agarram com unhas e dentes à alegria. Tem aula de yoga e shows on line. São tantos que me perco na agenda.
Fotografo os objetos que me cercam, tanta coisa pra limpar. Talvez eu devesse desapegar-me deles e montar uma clausura. Talvez eu deva produzir outros, mandalas, mantas e tapetes, e enfeitar ainda mais meu horizonte.
Saudades dos amigos, do mar, dos anos setenta. Saudades dos hippies, da revolução sexual, da dança afro com Rose Domingos, dos passeios de bicicleta. Da Leila, avó agora, presa em Lisboa e de abraços.
Quando o pandemônio acabar, sairemos às ruas nos abraçando, como nos finais de guerra? Haverá uma explosão artística como nos tempos da ditadura? Quem serei eu, quem serás?
...



Acordei às seis, levantei da cama, espreguicei-me, imitando minha gata, chorei por conta da pandemia, lavei o rosto, escovei os dentes, liguei o Spotfy que, infelizmente, toca o artista que escolho e, por vontade própria, cismou que eu gosto de Zeca Pagodinho. Procurei uma opção de bloqueio, mas só encontrei Minha Lista. Fiz café e tapioca, vesti-me disfarçada de mais nova, com medo da carrocinha: chapéu, óculos escuros, máscara, minissaia porque as pernas enganam minha idade vistas de longe, senti ânsias de vômito e pânico, respirei fundo, escovei os dentes de novo e saí para caminhar durante uma hora no Jardim Suíço, onde as pessoas evitam-se no labirinto de caminhos, e são muito poucas, dei bom dia aos poucos transeuntes, e aos guardas, como todos os dias, alguns me responderam. Acionei o despertador do celular para agendar o fim da caminhada, tirei os óculos escuros porque ficaram embaçados com a máscara, organizei meus pensamentos enquanto me exercitava, agradeci por ter vivido a revolução sexual quando era jovem, e a pandemia agora que já sou idosa, e não ao contrário, o que seria um desastre. Mandei boas energias para meus parentes e amigos e, terminado meu tempo de caminhada, alonguei- me ao sol. Voltei para casa, tomei um banho de roupa, chapéu e tudo, limpei os óculos, escuros e de grau, coloquei tudo pra secar no cabide rente à janela, comi uma pera, mandei mensagens para alguns amigos, para saber deles, preparei o almoço, fiz a cama e varri o apartamento. 
Agora estou pronta para enfrentar, com resignação e criatividade, mais um dia igualzinho aos outros. 
E estou aqui, escrevendo para espantar o espanto, sem saber direito que domingo é hoje. 
Preciso raspar as pernas e maquiar- me, antes que comecem as vídeochamadas.

08/04/2020
Parto um filé de frango em pedaços, tempero e coloco no fogo. Dou uma mexida. O whatsapp apita e vou olhar o que é. Sou abduzida pelas mensagens e a panela queima. Olho para ela, triste.
Sinto muito pelo incômodo, mas a pandemia foi necessária para que eu voltasse a escrever, e aprendesse a cozinhar.
Assim que acordei, Nosso Senhor me disse:
- “Pegue  essa panela e vire-se”.
Humildemente, obedeci.
Como dizia meu professor de Psicologia, o saudoso Clauze, só se aprende a namorar namorando, só se aprende a pedalar pedalando, só se aprende a pedalar pedalando, só se aprende a amar mando. Aprendemos errando.
Amanhã será um novo dia. Uma panela de cada vez. Amém.


Proteja-se. O Estado não vai proteger você. Para cada trabalhador morto, filas de desempregados. O que faz a Economia parar não é o isolamento mas a pandemia. Espere um dia. O governo tá perdido, sempre volta atrás. Não tenha medo do mico. Se tiver que trabalhar, vá de máscara, luvas, óculos, chapéu, óculos burca. E se alguém se aproximar demais, espirre. 😉

Assim segue meu confinamento: unha do pé encravada, mala de fotos de papel em cima da cama, para escanear e desapegar, alho nascendo no vaso de plantas, saudade imensa no coração, apartamento meio bagunçado, mas limpo. Minha porção mulher dona de casa durou o primeiro mês. Comendo quentinhas. Comprei uma burca e fui vestida com ela ao dentista, na maior cara de pau. Às vezes acordo bem, às vezes acordo mal. Quando desperto sem ânimo, ligo a TV e ouço notícias. A indignação me dá vida. Não consigo fazer exercícios físicos. Tô tendo câimbra. Ontem finalmente aceitei brincar de esconde- esconde com Tati, minha gata. Uma forma de correr pelo apartamento pequeno. Vi filha, neta e genro pela janela do carro. Desci de burca, máscara, chapéu, óculos escuros, luvas e botas, fazendo graça pra não chorar. Odeio vassoura, ferro, rodo, aspirador e panela. Mas tento resolver essa dificuldade pra não ter que reencarnar só pra isso. ●



Fábio Faria tá feliz. Levou o pai velho e o filho de cinco anos para a posse dupla, agradeceu à esposa, todo mundo aglomerado numa canoa furada bem em cima do telhado, para onde vão, como na velha piada, os gatos já mortos. 
Kafka, G G Márquez, Isabel Allende, Castanheda, Borges, todos estupefatos com a realidade fantástica da política brasileira.
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Estranha normalidade. Danço conforme a dança da minha cabeça. E oscilo entre deixar a louça na pia ou secar as sacolas plásticas por cor e em ordem alfabética. Isso é horrível: estou me habituando. Talvez passe a pandemia e fiquem as manias. Vou sair às ruas abraçando as pessoas ou continuar num eterno confinamento. ●
Enquanto morremos, mortas ou confinadas vivas, sem poder conhecer o neto que nasceu, sem abraçar o amigo, o filho no aniversário, os pais solitários,  enquanto enterramos entes queridos em valas, enquanto o time governista é preso ou tem a casa invadida pela PF para buscas e apreensões, enquanto a Economia desaba e o número de funerais alça voo, empresas vão à falência, famílias passam fome, doentes gemem nas ambulâncias à espera de leitos, as crianças ficam sem escolas, os desvio de verbas para compra de respiradores é banalizado, o Queiróz continua desaparecido e a PM espanca os negros, o Executivo está aglomerado, gastando uma fortuna numa cerimônia de posse dupla.
Não perceberam que a canoa bolsonara está furada e o mar não tá pra peixe.
Mais um Bolsonaro. Toma posse já em cima do telhado, para onde vão todos. Amém