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12/07/2020

Alfredo Sirkis. Missão cumprida


Alfredo Sirkis foi assíduo frequentador do Posto 9 em Ipanema, e vinha sempre pela ciclovia que ele mesmo idealizou, às vezes com a família, às vezes sozinho, mas sempre com seu jornal, sua cadeira de praia e suas raquetes de frescobol. Abriu 160 quilômetros de ciclovia e um dia teve sua bicicleta roubada. Não éramos amigos, mas conhecidos, ele atencioso comigo, e eu admiradora de seu trabalho e de seu jeito meio menino, meio bonachão.

Quando eu era bem garota, meu pai me disse: não se meta com política, a filha de um amigo meu foi se meter e despareceu. Não entendi direito o aviso, só fui conhecer melhor a História da ditadura no cursinho de pré-vestibular com os professores inesquecíveis Iber Reis e Manoel Maurício, como muitos da minha geração, que não foram politizados em casa.
Foi por meio do Jorge Sá Martins que conheci o livro do Gabeira “O que é isso, companheiro?”, fiquei encantada com a trajetória desses jovens guerreiros, tanto que recortei a contracapa com a foto do autor sorridente com uma galinha debaixo do braço, e coloquei num porta-retratos na sala do apartamento.
Era um momento de muita esperança. Uma geração de jovens guerreiros foi praticamente dizimada, a que seria nossos políticos atuantes e não estaríamos até hoje com essa corja de velhos corruptos, salvo algumas raras exceções. Mas os sobreviventes exilados voltaram, e o cenário era de muita alegria e novas possibilidades. Conheci os livros do Sirkis, e fiquei igualmente encantada. Nunca vou esquecer a figura imponente e linda daquele jovem louro, alto, elegante, desfilando em cima de um caro aberto pela Avenida Rio Branco.
Foi a Ana Richard, fundadora e dona da Escola Parque na época, que me apresentou o Alfredo. O Posto 9 era frequentado por Minc, Caetano, Regina Casé, artistas e intelectuais, todos na praia. Nesta praia, quando eu estava grávida de quase nove meses, Caetano deu um beijo na minha barriga. Sem desmerecer o pai músico de minha filha, esse beijo selou a atividade de cantora, que ela desempenha com tanta propriedade.
Uma vez Alfredo veio sentar-se comigo, trazendo sua cadeira de praia, seu jornal e suas raquetes. Eu me senti a tal. Fiz sinal para um vendedor de latinhas de cervejas e pedi uma para mim, perguntei se o Alfredo queria, mas ele tinha... dormido, para minha total decepção.
Confundo as épocas, mas nas festas do Gurilândia também pude conhecer o Minc, e a Ana me levou ao Parque Lage uma reunião para organizar a fundação de um Partido Verde no Brasil, assinei lista de presença, orgulhosa e privilegiada por estar ali naquele momento. Sempre votei no Verde.
Havia esperanças para todos.
Não sei se em 1986 ou 1989, houve uma passeata (como chamávamos as manifestações). Eu estava com outras poetas um carro aberto, na concentração, falando em voz alta nossos poemas, quando pediram que saíssemos pois o candidato ia precisar do carro. Todas saíram, menos eu, que fiz cara de paisagem e fiquei ao lado dele, dos companheiros, da mulher e da filha Maya, que cheguei a segurar no colo neste dia, atravessando, orgulhosa, a longa Avenida Rui Branco ao lado de figura tão ilustre. Eram tantas câmeras apontadas na direção dele e eu estava tão próxima, que imaginei um dia encontrar uma foto ou um filme deste momento inesquecível.
Aí está. Achei um pedacinho onde apareço, jovem, de cabelos longos e flor amarela no cabelo. São apenas alguns segundos, dos quais me sinto muito honrada.
Tive uma juventude repleta de esperanças. Mas durou pouco. Depois do movimento Diretas Já, e de muita luta, finalmente o povo brasileiro ia votar novamente, após um longo período de silêncio, censura, tortura e ditadura.
Fernando Collor de Mello foi eleito democraticamente.
O Posto 9 deixou de ser o ponto de encontro de artistas e intelectuais. E perdi as esperanças de novo.
A partida precoce de Alfredo Sirkis é triste e dolorida, e fica mais triste ainda neste momento de total desamparo em que estamos, quando precisamos tanto de homens guerreiros, lúcidos, íntegros, inteligentes e coerentes como ele. Ficamos mais desamparados.
Obrigada, Sirkis, por ter dedicado sua vida ao Brasil, mais ainda, ao Planeta. Vamos devorar seus livros, e torcer para que sejam inspiração para os jovens de hoje. Siga em paz. Sua missão foi cumprida. 

Link para Youtube

21/06/2020

A meleca presidencial (contos de pandemia)


Presidente da República de Macondo passeia com seus capangas numa padaria, e tira, ao vivo, uma meleca do nariz para cumprimentar um pequeno grupo que se amontoa em volta dele para fazer selfies com seus celulares.
O mais sortudo, aquele que recebeu a meleca presidencial, como um jogo antigo de crianças chamado de passa anel, vai para seu casebre orgulhoso, pensando em procurar uma redoma para expor a relíquia na sala e, quem sabe, cobrar entrada, como fizeram Pelayo e Elisenda com o anjo caído, no conto Um senhor muito velho com umas asas enormes, do livro A incrível e triste história de Cândida Erêndira e sua avó desalmada, de Gabriel García Marquez, que o presidente nunca leu.
A Meleca Presidencial escorrega das mãos do sortudo, cai numa vala de água suja e é encontrada meses depois por dois catadores de lixo na cidade de Goiânia, eles têm vômitos frequentes, diarreia, tontura e mãos inchadas, enquanto notam um brilho azul emanando da meleca, e concluem que só pode ser uma meleca preciosa, ou mesmo algo sobrenatural. E quinze dias depois, todos que tocaram a meleca reluzem seus corpos brilhantes, e começam a morrer.

O Peste (conto de pandemia)


O PESTE
Macondo, 11 de abril de 2020
Acordo às seis horas da manhã, contra todos os meus hábitos e princípios e verifico que ainda é domingo. Estou preocupada com a chegada da peste às comunidades, algumas também conhecidas como favelas, onde mais da metade da população não tem água encanada enquanto a mídia nos suplica intermitentemente que lavemos bem as mãos, durante vinte segundos cada uma. O ministro da saúde, em cadeia nacional, informa que está providenciando a higienização e saneamento de uma comunidade inteira, que ainda não pode dizer qual é, o governador do estado diz, em entrevista, que desconhece o plano, o presidente da república, em pronunciamento, afirma categoricamente que se trata apenas uma gripezinha e convoca, via redes sociais, uma passeata a favor do fim do confinamento e da volta ao trabalho, depois apaga a mensagem, e um grupo de seguidores, de carros blindados, máscaras, luvas e seguranças armados, fazem uma pequena carreta em apoio à volta dos outros ao trabalho. O governador do estado afrouxa o isolamento de cento e cinquenta municípios, fazendo com que trabalhadores voltem a girar a economia, surgem dois casos em um dos municípios liberados no mesmo dia, forçando o governador a voltar atrás e jogar a responsabilidade da decisão para os prefeitos.
Os idosos são obrigados por lei a ficar em confinamento e, simultaneamente, há uma campanha de vacinação contra gripe, na qual a última idade tem prioridade e se amontoa em filas ao sol, todos espremidos uns contra os outros, no momento em que estamos sendo orientados a ficar a dois metros de distância entre todas as pessoas que não moram conosco, as vacinas não são suficientes ou nem chegam, e os velhos, aproveitando a oportunidade única, talvez última, de saírem de suas casas, são forçados a voltar outro dia, mais cedo, se ainda estiverem vivos, para alcançarem as primeiras doses.
O presidente faz o quinto pronunciamento desde o início da peste, dizendo que respeita a autonomia de prefeitos e governadores e que as decisões são de responsabilidade deles, acrescenta que o governo federal não foi consultado sobre a amplitude das medidas, fala ainda sobre os projetos na área econômica que estão sendo adotados, como o auxílio emergencial para mendigos moradores de rua, instruídos a seguirem o minucioso passo-a-passo de cadastro no site oficial, pela internet, em seus próprios computadores, e habilitarem-se a receber as seiscentas patacas do benefício, mediante a criação de uma senha alfanumérica, com cinco dígitos, e quatro caracteres.
O presidente diz que conversou com médicos, pesquisadores e chefes de estado de outros países, e defende o uso da clorofila para tratamento da peste. Antes do pronunciamento ir ao ar, o ministro do supremo tribunal celestial havia proibido o presidente de suspender medidas adotadas por governadores, milicianos e prefeitos sobre isolamento social, quarentena, funcionamento de escolas, fechamento do comércio e circulação de pessoas, entre outros mecanismos eficazes para a redução do número de infectados e de óbitos, como demonstram a organização internacional de saúde e vários estudos técnico-científicos, que o chefe da nação desconhece.
A mídia divulga um novo perfil nos institutos de pesquisa: os eleitores arrependidos do presidente, dos quais setenta e dois por cento apoiam as decisões presidenciais, com a nítida intenção de reduzi-los a cada dia, como se arrependimento fosse critério de pesquisa passível de verificação séria.
Capas de chuva são usadas por profissionais de saúde em lugar de aventais, e água de coco substitui sangue nas transfusões, conforme recomendação do Presidente de Macondo. Corpos mortos pela pestilência são trocados e as famílias enterram seus cadáveres sem poder vê-los nem suspeitar que a pilha do necrotério não possui mais etiquetas de identificação individual, separados apenas em quatro tamanhos: P, M, G, e GG, e entregues a familiares uns dos outros, para que seja acelerada a saída dos defuntos e liberadas vagas para novos falecidos que chegam a cada minuto, evitando o inevitável: cremá-los em fornos coletivos, nem nomes nem preces, durante a noite, às escondidas.
Astronautas higienizam a entrada da maior comunidade de Macondo  posando para fotos enquanto ruas, becos e ruelas escada acima continuam acumulando lixo, pessoas, barracas de alimentos e objetos virulentos no chão sujo que os próprios moradores tentam varrer à exaustão, com vassouras de cabo quebrado e pás furadas pelo tempo.
A prefeitura coloca guaritas, guardas e grades no calçadão da orla para inibir a prática de exercícios, passeios de bicicleta e com animais de estimação e quem não obedecer pode ser advertido, multado ou conduzido a uma delegacia.
Caminho lentamente pelo meu quarto pequeno, com medo de levar um tombo, torcer um pé, cortar-me ou dar uma cabeçada no momento em que o mundo inteiro constrói às pressas hospitais de campanha e cemitérios clandestinos.
A mídia martela noite e dia a orientação para ficarmos em casa, informa que a frota de veículos públicos foi reduzida, enquanto apresenta imagens de trens, barcas, ruas e ônibus superlotados, todos ignorando a orientação para que passageiros não viagem de pé. Metade das mulheres do país e alguns homens aprendem a confeccionar máscaras de pano para sair às ruas e não serem contaminados, lojas disponibilizam palitinhos descartáveis para que os usuários digitem sua senha no cartão sem tocar o teclado, já que é por meio das mãos e das vias aéreas que se transmite a pestilência, estou neste momento de máscara e luvas, cercada por recipientes com álcool em gel.
Funerárias e coveiros enriquecem, cidades cavam imensas valas comuns aguardando os mortos enquanto multidões se aglomeram para comprar peixes e ovos de Páscoa.
Hoje é dia santo e estou muito feliz, tenho noventa e nove anos e moro há trinta num asilo público, nasci nas ruas, fui prostituta, vivi grande parte da minha vida numa casa de tábuas sustentada por palafitas em cima de esgotos pestilentos, sem calçamento nem luz elétrica e, pela primeira e única vez, serei entrevistada em cadeia nacional, junto a moradores de rua, detentos, camelôs e prostitutas sem trabalho, muito feliz porque finalmente o país inteiro vai nos ver.


A arca (contos de quarentena)


A BARCA
Gloria Horta
Abro os olhos e estou na imensa sala de uma casa de madeira, deitada, com muitas pessoas ao meu redor, um pouco distantes. Uma mulher, sorrindo, me diz:
- Bom dia, Maria. Que seja alegre o seu despertar.
Ainda sonolenta, tento sentar-me lentamente. A mulher me ajuda, e diz:
- Fique tranquila, você está bem e nós estamos aqui para ajudar.
Limpo a garganta e olho em volta. Há dezenas de pessoas olhando para mim, algumas de cabeça branca, outros jovens, e muitas crianças, homens e mulheres. Todos vestidos de branco.
- Onde estou?
- Você está segura, diz a mulher, bem de saúde. Pode nos dizer quais as suas últimas Lembranças? Sem pressa.
- Lembro que há uma pandemia. Fugi de casa porque não suportava mais viver trancafiada no apartamento com meu padrasto. Ele....
Sinto vontade de chorar e vergonha de contar, mas digo, baixinho:
- Desde a morte de minha mãe, vivo com este homem. Ele bebe muito, e me olha de um modo estranho. Parece doente, mas não quer procurar um hospital. Tenho medo de ser atacada ou contaminada.
Tomo fôlego, e continuo, com a voz fraca:
- Sentia medo, a qualquer momento podia tentar abusar de mim, ou ser violento. Via em seu olhar. Ouvia, mesmo durante a noite, sua tosse intermitente. Não tenho família nem a quem recorrer. Acho. Com a pandemia, as pessoas estavam receosas de receber outras em casa. Tentei pedir ajuda a conhecidos, mas todos foram reticentes. Acho. Não me lembro a quem pedi ajuda, nem quem eram meus amigos.
Tento recordar, faço um esforço:
- Fiz minha mala e abri a porta para fugir, estava febril e tossia, senti uma zoeira na cabeça, a vista ficou turva, e acho que desmaiei. E acordei aqui. Onde estou? Quem são vocês?
- Somos pessoas dispostas a ajudá-la. Meu nome é Vicentina.
Outra mulher se aproxima, e Vicentina diz:
- Essa e Maria Augusta, ela cuidará de você.
Maria Augusta sorri, sorrio amarelo de volta.
Olho para a janela atrás das pessoas, e estamos cercadas de mata verde, o sol está nascendo, ouço barulho de pássaros e água correndo. Não me lembro de ter estado neste lugar antes. Pergunto:
- Há quanto tempo?
- Muito, ela responde, apertando minha mão.
Estou impressionantemente calma, ajeito-me e percebo que meus cabelos estão enormes, mas limpos e sedosos. Também estou vestida de branco, como todos. Minha pele está bem cuidada, mas muito branca, não tenho mais nenhuma marca de biquíni. Sou a mesma pessoa, mas pareço outra. Tão leve e angelical que penso que talvez não queira sair nunca mais daqui. Não sinto a dor nas costas que me acompanhou durante anos. Nem a aflição no peito, que recordo, mas como um fato longínquo no tempo.
Respiro fundo e insisto:
- Como vim parar aqui?
Maria Augusta olha-me nos olhos e explica, lentamente, como se estivesse dando o tempo necessário para que eu apreendesse tantas informações:
- Selecionamos muitas pessoas para serem isoladas e permanecerem saudáveis e vivas após a pandemia. Você foi uma delas. Todos aqui não tinham parentes e estavam de coração aberto para viver uma vida diferente. Como você pode ver, escolhemos pessoas idosas, para garantirem a transmissão dos saberes, jovens em idade de reprodução, e crianças abandonadas. Foi preciso ter certeza de que não dariam pela falta de vocês.
Sinceramente, não acredito em nada disso. E nem me importo. Sem pandemia e sem padrasto, no meio dessa gente calma, tanto faz como cheguei aqui.
Maria Augusta para por um instante, e as pessoas vão se sentando à minha volta, sorrindo para mim, nitidamente com o intuito de me acalmar. No entanto, estou calma.
Tento sorrir de volta, estou com a boca seca, peço água e bebo um copo grande, para tomar tempo. Maria Augusta pega o copo de volta e me oferece uma fruta, que não reconheço. Faz um sinal com a cabeça para os presentes e ouço, em várias línguas, compreendendo todas:
- Fique bem.
- Não se preocupe.
- Estamos salvos.
- Também despertamos confusos como você.
Olho para Vicentina, e murmuro, gaguejando:
- Estou entendendo tudo.
Ela sorri e me diz:
- Enquanto você dormia, aprendeu muitas coisas novas, idiomas, maneiras de plantar e colher, receitas saborosas, marcenaria, Filosofia, Economia, e por aí vai.
Estou paralisada, realmente busco em minha memória, e encontro muitos saberes que, antes de desmaiar, não conhecia. Fico pasma. Perplexa, talvez seja a palavra exata. Toco meu corpo, sinto-me viva e sou capaz de ver o sol está mais alto lá fora. Ninguém está de máscara no rosto. Eu já estava me acostumando a ver apenas os olhos das pessoas nas ruas. Durante muito tempo, era como se usássemos burcas. Eu lembro muito bem. De todas as cores e muitos modelos, customizadas, discretas, bordadas, fluorescentes, teatrais, transbordando criatividade. E originais, já que cada pessoa podia costurar ou encomendar a sua própria. Mesmo com tanta tristeza, as máscaras davam às criaturas um ar divertido.
Levanto-me lentamente e caminho até a janela, para certificar-me de que ainda tenho movimentos. Lá fora, vejo uma mata verde espessa, pássaros e borboletas de variados tamanhos. Inumeráveis colinas e, mesmo a distância, enxergo casarões nos cumes, muitos, a perder de vista, bem distantes uns dos outros. Pássaros, lagos com cisnes diferentes dos que conheço, ou seriam patos? Outros estranhos animais voadores. Água corrente por todos os lados, em pequenos riachos e lagoas.
Lembro: na pandemia, os animais silvestres e selvagens passaram a andar pelas ruas, enquanto nós permanecíamos em casa, enjaulados, com medo do vírus. Como um zoológico às avessas. Tínhamos medo uns dos outros, e um pouco de fome, a comida era escassa. Muitos moradores de rua foram instalados em hotéis de luxo, velhos abandonados em asilos foram recolhidos e adotados por famílias bondosas, ricos isolaram-se em iates, casas de campo ou navios. A memória é nítida, como é nítido o medo que eu sentia do que poderia acontecer comigo, cada vez mais isolada do mundo e refém daquele homem bruto e doente que eu detestava.
Mas na rua também víamos muitas pessoas mal vestidas e desleixadas, não sei se deprimidas, ou cansadas de lavar e passar roupa. Como estará minha aparência? Pergunto:
- Tem um espelho aqui?
Vicentina faz um sinal com a cabeça, e Maria Augusta me conduz pela mão e, todos juntos, vamos para a sala ao lado. Um salão de dança, como muitos que já vi, com espelhos e barras. Olho-me por inteira, e pareço bem. Estou um pouco mais gorda, mas minha musculatura não dá sinais de ter ficado tanto tempo parada. Apenas meus cabelos estão longos demais, e a pele muito clara, isso me torna uma pessoa que sou eu, mas também não sou mais. Indago, apreensiva:
- Quantos anos tenho?
- Os mesmos que tinha quando chegou. O tempo não passa aqui do mesmo jeito que no seu mundo.
Começo a rir, de nervoso e deboche:
- Aqui não é meu mundo?
- Não, responde uma criança com olhinhos puxados de índia, numa língua diferente que, misteriosamente, entendo. Alguns adultos sorriem e fazem sinais para que a criança se cale.
É claro que estamos no mesmo mundo. Faço um ar de zombaria e digo:
- Sei. Vou fingir que acredito.
- Vamos conversar, diz Maria Augusta, enquanto todos sentam-se em roda, sempre sorrindo para mim, com a nítida intenção de manter-me calma.
Sinto um ligeiro tremor e uma vontade imensa de chorar. Lembro que meu padrasto chegou a tentar me agarrar à força, mas estava muito bêbado e fraco e, apesar dele ser muito mais alto e forte que eu, consegui empurrá-lo e trancar-me em meu quarto. Sim, foi aí que decidi ir para as ruas, preferia o risco do vírus ao risco do estupro. Digo:
- Estou me lembrando de uma coisa muito ruim. Meu padrasto, ele...
Maria Augusta me interrompe:
- Calma, apagamos as lembranças desagradáveis, mas sempre deixamos preservado o momento em que vieram para nós. Você esquecerá. Seu padrasto faleceu há muitos anos, você não está mais em perigo.
Todos ficam em silêncio, como se já conhecessem o procedimento. Então eu me assusto:
- Mas eu tenho minha memória intacta!- digo,convicta.
- Não, Maria, você esteve sob efeito de uma longa hipnose. Todos aqui passaram por isso. As experiências traumáticas e desagradáveis foram apagadas. As recordações inúteis desapareceram de nossas mentes, fatos que nos fizeram sofrer sem agregar nenhum ensinamento, pessoas que nos fizeram mal, mas que não fazem a menor falta na nossa história. Indago:
- Uma lavagem cerebral?
E acrescento que não me sinto sem memória. Como podem selecionar o que é bom e o que não é nas minhas lembranças?
Antes que me respondam com respostas evasivas, continuo:
- Ainda tenho o apartamento? O lugar onde eu morava? Vou voltar para lá?
Maria Augusta diz, sempre com voz mansa.
- Não, Maria, não existem mais apartamentos, agora há casas com jardins, e você terá a sua. Sem prédios superlotados, as epidemias desapareceram completamente. Não foi suficiente construir hospitais e abrigos, foi necessário, em todo o seu mundo, desamontoar as pessoas, e colocá-las de volta de onde nunca deveriam ter saído, em casas arejadas em pequenos municípios. É isso, minha querida, a cidade grande foi um plano que não deu certo. Houve uma descentralização, me entende?
Não, não entendo. Por que se refere ao “meu mundo”, como se houvesse outro? Não vou insistir nesse assunto, sei que estou viva, percebo pelo ar que respiro, pela temperatura amena. Dou um longo suspiro, muito longo mesmo.
- Vamos fazer assim, diz Maria Augusta, vamos comer, estamos todos com fome, e depois eu explico tudo que você precisa saber. Só pense uma coisa, você está bem e entre amigos. Embora não conheça essas pessoas, elas te conhecem muito, cuidaram de você durante anos, acredite em mim. Ou você não estaria em plena forma após esse sono tão longo.
Concordo com a cabeça e, aos poucos, vamos em direção a um outro lugar onde há uma mesa grande no centro, e um farto café da manhã. O silêncio termina, e as pessoas começam a conversar entre si, as crianças a brincar e correr, os idosos mais devagar, os jovens rindo e falando quase todos ao mesmo tempo, cada um num idioma diferente. Todos, inclusive eu, entendem-se perfeitamente. De todos os sustos que estou levando nesse estranho despertar, este é o mais espantoso: entendo todos as línguas. Há frutas que desconheço, mas não comento, limito-me a experimentá-las, pensando que talvez tenham tirado, sem querer, as frutas da minha memória. Como saber o que esqueci, se não me lembro? Difícil acreditar nisso.
Antes de sentarmos à mesa, um homem alto, bonito e barbado, diz para todos:
- Podem arrumar-se.
Colocam-me sentada à cabeceira da mesa, todos desaparecem por alguns instantes, e voltam vestindo roupas distintas. Trajes tribais, saias longas, batas, shortinhos, camisetas, umas formais, outras bem informais para meu gosto. Tenho a certeza de que estou com pessoas de todos os países. Voltam diferentes, personalizados, e eu rio com os penteados, os brincos, os tecidos, de diferentes épocas e lugares do meu mundo. Sorrio com esse pensamento. É meu mundo, sim, o que via nas ruas e nas revistas e filmes, antes da pandemia, antes dos mascarados.
Esforço-me para ficar calada, apesar das mil perguntas que giram na minha cabeça. Os assuntos sobre os quais conversam são os mais variados: fofocas, receitas, comentários sobre colheitas, plantas medicinais, e até sobre o tempo. Será que amanhã vai chover? Gostou da cor do meu cabelo? Você não sabe da maior: estão programando mais um casamento coletivo. E adivinha! Levy se casará com Nini. Antenor com Cléa. Eu já sabia, diz alguém, estava na cara que ali rolava alguma coisa. Estavam sempre juntos.
- Eu vi eles se beijando, diz uma criança pequena, querendo participar da conversa dos adultos.
Novamente alguns adultos encaram a criança marota, para tentar silenciá-la.
Sejam quem forem essas pessoas, são conversadoras e animadas. Mesmo perplexa, não consigo deixar de rir dessa cena inesquecível. Atônita, mas sentindo-me em casa. Na verdade, acho, estou em casa, já que tudo indica que vivo neste lugar há alguns anos. Ninguém parece querer o meu mal, estou segura. Confusa, mas segura. Não tenho medo de nada. Meu principal medo desapareceu: a pandemia. Só isso importa agora. Posso abraçar as pessoas e beijar, como antigamente. Poderei sair às ruas normalmente, e normalmente fazer compras no supermercado, trabalhar, cuidar da minha casa, seja lá onde for. Tenho plena convicção de que há uma vida normal à minha espera.
Sem me dar conta, já estou conversando com um homem da minha idade, de cabelos longos e barbicha, elogiando a beleza desse amanhecer avermelhado, com lua quase transparente desaparecendo enquanto o sol esquenta.
Vejo uma mulher bonita, que me lembra muito minha mãe quando jovem, e desabo a chorar. Ela me olha de volta, com carinho. Sim, tenho minhas lembranças. Todos ficam em silêncio, respeitando meu emudecimento. Tento me justificar, e digo para todos:
- Minha mãe, ela faleceu na pandemia.
- Conservamos memórias de pai e mãe, diz uma jovem de tranças enormes e ruivas.
E, tentando animar-me:
- Quer tomar um banho e trocar de roupa?
Aceito, e saio com ela, ainda fungando. Ela se apresenta. Tem a minha idade e viveu a pandemia nos Estados Unidos, em Michigan. Guarda lembranças ruins, mas evita acessá-las.
- Meu nome é Mary Catherine Smith, diz, dando-me um abraço. Choro de novo, há tanto tempo não sentia o corpo de outra pessoa tão perto. Nada do que está me acontecendo é mais espantoso que minhas últimas lembranças de um Rio de Janeiro com ruas vazias de pessoas, animais passeando, esquilos, saguis, patos, gansos, garças, cobras, javalis, cotias, pacas, tatus, porcos, cavalos,  e até leões foram vistos. Alguns policiais mascarados, carros com pneus vazios, parques em total abandono, sacos de lixo acumulados em algumas esquinas, e muita gente perambulando sem destino, falando sozinhas ou chorando feito loucas, e sendo recolhidas por carros pretos de chapa vermelha, levadas para abrigos, hospitais ou sanatórios, todos superlotados.
- Acho que fugi de casa pensando em morrer, eu disse.
- Isso já ficou para trás, sussurra Mary, num inglês perfeito que compreendo e domino perfeitamente.
Ela me mostra um imenso quarto de vestir, com roupas de todo tipo, parecem usadas, mas estão novas. Escolho um vestido de malha preto com bolinhas brancas, parecido com um que adorava. Experimento sapatos e acabo optando por sandálias de dedo.
Pergunto para Mary, acho que com voz de criança:
- Eu desmaiei e vocês me pegaram, foi?
Ela cai na gargalhada, talvez pelo meu tom infantil.
- Maria, não se preocupe tanto com detalhes. São muitas as informações que você ainda precisa e vai ter, mas aos poucos, cada coisa na sua hora. Não sou eu quem vai te explicar como tudo acontece aqui. A responsável por você é a Maria Augusta, vá conversando com ela.
Mary olha em volta, para ter certeza de que estamos sozinhas, e sussurra, em tom confidencial:
- O sistema de esvaziamento seletivo de memórias não é cem por cento eficaz. Acontecem muitos erros.
Fala mais baixo ainda:
- Estão sempre tentando aperfeiçoar. Sobram muitos resquícios, e provavelmente é o único procedimento que não funciona exatamente como gostariam. Tentam deixar intactas as lembranças do momento em que saímos do nosso mundo, e apagar tudo que foi nocivo e não serve para nada.
Enquanto fala, Mary me guia para uma sala de aula ampla, onde uma outra mulher de idade parece dar aula. Sento-me aos outros “alunos”, que são muitos, e ouço:
- Pra quem não me conhece, especialmente vocês do Brasil, sou Emília da Glória, do Rio de Janeiro, e por esse motivo fui escolhida para a palestra de hoje. Tudo vai parecer uma loucura, mas aos poucos será a coisa mais natural do mundo. Todos aqui passaram por esse um grande espanto.
E explica. O mundo inteiro estava se consumindo com muitos desastres, ambientais e de saúde, a humanidade estava ameaçada. Drones imperceptíveis sobrevoaram a Terra em busca de pessoas solitárias, dispostas a viver uma experiência nova, pessoas que, como eu, como vocês, encontravam-se em estado de total abandono. E foram escolhidas algumas centenas... centenas de milhares. Ou milhões. Para serem cuidadas e darem continuidade à vida. Houve muitas mudanças em todos os países. Todos. As principais foram o desmonte das grandes cidades e das aglomerações. Fronteiras se quebraram e foi criada uma nova forma de vida, possível. Vocês, escolhidos, foram trazidos por nossos mestres e, enquanto dormiam um sono profundo, receberam aulas e instruções em estado de inconsciência, com o intuito de se prepararem para regressar à vida.
Finjo que acredito. Emília da Glória continua:
- Priorizamos idosos com sabedoria, teoria ou prática, povos das florestas e de tribos com conhecimento de plantas, médicos, professores e técnicos nas mais diversas áreas, jovens sensíveis e com capacidade de reprodução, e crianças sem família, abandonadas em abrigos, e também alguns moradores de ruas e periferias, enfim, pessoas cujo desaparecimento não seria notado.
Aceno, concordando, mas não estou convencida. Emília da Glória percebe minha expressão de desconfiança, acho, mas segue em frente:
- Há, diariamente, viagens de regresso e chegada, de vários lugares diferentes, temos tecnologia para isso. Muitos já voltaram para a cidade ou país que escolheram, saíram daqui em famílias recém-criadas. Vocês escolhem onde querem viver daqui para a frente. São livres. Escolhem o país e a família aos quais desejam pertencer. Alguns preferem ficar, temos sempre muito trabalho. É necessário cuidar dos que ainda estão em estado de sono profundo e aprendizado, e precisam estar limpos, alimentados, massageados, enfim, com todos os cuidados que requer uma pessoa acamada. Mais cedo ou mais tarde, todos voltam à vida. Olha para mim, e diz:
- Maria, logo chegará a sua vez. Só depende de você.
A aula é pública, mas Emília da Glória olha para mim. Tudo faz sentido, menos estar em outro mundo. Talvez seja uma maneira metafórica de nos fazer entender que a vida será outra, muito diferente após a pandemia. Que teremos que abandonar todas as nossas crenças e apegos, e formarmos uma nova consciência. É com esse pensamento que aceito as explicações de Emília da Glória, e sou invadida por uma ponta de felicidade. A aula é interrompida para o almoço, quando de novo compartilhamos uma mesa farta, com alimentos saborosos e desconhecidos, que saíram da minha memória, ou não existiam no Brasil.
De tarde, mais palestras, sobre temas que eu conhecia de nome: Ecologia, solidariedade, subsistência, manejo da terra, dicas de corte e costura, um apanhado geral de tudo que precisamos saber para sobreviver, é o que dizem.
Anoitece quando somos dispensados para o banho, trabalho e atividades lúdicas.
- Disposta a trabalhar comigo? – pergunta Mary.
- Em quê?
- Cuidaremos dos adormecidos, topa?
Concordo e ela me leva com ela para uma gigantesca sala branca com berços de prata, fechados como casulos, com alguns sinais iluminados no que parece ser a tampa. Uma névoa branca permeia o ambiente. Amplas janelas com cortinas esvoaçantes igualmente brancas. Um silêncio de surdos profundos. Mary aproxima-se do primeiro, clica num ícone e, lentamente, a tampa se abre.
Estou arrepiada. Vejo uma criança negra, cerca de treze anos, que ainda dorme. Pareceria morta, se não fosse a expressão de tranquilidade. Escovamos seus cabelos, lavamos seu corpo pequeno, exercitamos suas pernas, braços, pés, cabeça. Seguimos um protocolo que Mary me ensina, cautelosa e meticulosamente. Choro de novo, disfarçadamente. Quantas crianças terão sido levadas pela pandemia? – penso.
Na parte de dentro do casulo, há uma espécie de capacete branco, feito de um material que desconheço ou não reconheço. Mary me ensina como encostá-lo na testa da menina durante alguns minutos em que, silenciosamente, observo. Mary observa um relógio com alarme projetado na parede, e sussurra:
- Assim esvaziamos a memória. Dois minutos por dia é suficiente. Um segundo a mais ou a menos e corremos o risco de apagar algo importante, ou deixar o que não mais importa.
Substitui o capacete branco por um azul, e murmura:
- Agora estamos injetando conhecimento. Não me pergunte como, aprendi assim, repito, e vem dando certo. Uma espécie de tradição, a gente aprende e repassa sem questionar.
Assim vamos, de leito em leito, até chegarmos à última criança. Após observar atentamente este procedimento, eu seria capaz de repeti-lo sem erro, acho.
Terminada a tarefa, saímos e finalmente vamos para o ar livre. Já é noite. Fico mais feliz ainda ao sentir a brisa, nem quente nem fria, amena como a temperatura.
Mary levanta-se e eu a sigo. Fazemos uma longa caminhada até chegarmos à cachoeira pequena, e meus olhos enchem-se de lágrimas novamente. Na pandemia, eu me questionava, angustiada, se ainda veria alguma de perto.
E quando olho para o céu, eu não reconheço posição das estrelas. Não vejo as Três Marias, nem Vênus. Não fico impressionada nem um pouco. Sei perfeitamente que o céu é diferente em diferentes continentes. Mas ainda é o meu mundo.
Sentamos numa grande pedra, olhando para a água cristalina. Mary conta-me sua vida, uma vida bastante banal, mas com histórias de abandono e solidão, muito parecidas com a minha. Talvez pior. Ela morava num lugar que chama de orfanato, mas não sei o que é. Onde ficam crianças abandonadas ou órfãs, ela me explica.
- Ou crianças de rua, como havia em seu país.
Tenho a impressão de ver a lua nascer de novo, mas não comento, estou com fome, cansada e confusa pelo dia tão intenso. Voltamos, mas não para a grande casa. Mary me guia para um lugar descampado, imenso, e sorri para mim como se estivesse prestes a me revelar uma grande surpresa.
- Chegou a hora, fala, sorrindo com um ar de marota. Melhor ver com seus próprios olhos que receber explicações em salas de aula. Ri, satisfeita, parece orgulhosa de ser a responsável por mim nesse momento.
De longe, ouvimos vozes cantando, instrumentos tocando, uma festa, com certeza.
Pessoas vêm caminhando por diversas trilhas, em direção ao gramado. Vão, em silêncio, formando um círculo. Encontro e reconheço as faces já familiares do meu grupo.
Parece uma despedida. Sete brasileiros são abraçados e beijados por todos, recebem salvas de palmas e despedem-se, alegres, confiantes, e com lágrimas nos olhos, provável saudade antecipada dos amigos dali.
Então surge no céu uma nave gigante e, delicada como um beija-flor, pousa na grama e abre suas portas, silenciosamente. Quatro moças, dois rapazes, três idosos e cinco crianças afastam-se de nós e formam um grupo que se dirige à nave. Logo surgem mais grupos, vindos de outras colinas, de todos cantos, e se juntam a outros que vão partir. É o que parece.
Tremo dos pés à cabeça, como estivesse vendo um Deus na minha frente, e observo esse caminhar sereno em direção à imensa embarcação. De dentro do pássaro gigante, que parece também um avião redondo, saem homens e mulheres bem idosos e se colocam enfileirados, para receber os que para lá caminham.
Uma voz, que todas as casas de todas as montanhas conseguem escutar, diz:
- Hoje é dia dos brasileiros. Ou melhor, dos que escolheram o Brasil para retornar. Seus habitantes chegam e retornam ao final deste ciclo de vinte e duas luas duplas. Bem-vindos os que chegaram e boa viagem aos que vão.
Há um silêncio ensurdecedor, Mary não move um músculo. Estou arrepiada e trêmula, sou cética, mas meus olhos não me enganam. A voz continua, no mesmo tom manso:
- Orbis Esopianeta Pythonissam 2020, de Lyrica 20MG, tem o prazer e o privilégio de hospedá-los. Boa sorte a todos.
Disparo perguntas como rajadas e Mary ri, somente ri, não responde. Paro, reflito e pergunto:
- Mary, os que saíram daqui escolheram, por livre e espontânea vontade, o Brasil para voltar?
- Simmmm!!! Responde, alegre. É isso.
Arregalo os olhos, assustada, e grito, meio esganiçada, quebrando o silêncio:
- E o Bolsonaro??????????
Todos se entreolham intrigados, há um burburinho, sobrancelhas franzidas. Perguntam, depois de vasculharem as memórias:
- Bolsonaro é quem?



Bisa na pandemia. Versão para Facebook. Curta


A BISA NA PANDEMIA 2020.

No ano de 2050, a bisavó, às vésperas de completar cem anos, fica caduca e volta ao passado, aos anos vinte, quando o mundo vivia uma epidemia. Volta a ter os mesmos hábitos daquela época distante, para surpresa e tristeza de sua bisneta, que não compreende as cismas da bisavó. Não deixa ninguém entrar no apartamento sem desinfetar-se, matricula-se em cursos on line, cozinha para semanas e congela. Pede compras por telefone e se recusa a sair às ruas, para desespero da bisneta, que pouco sabe dessa época remota, embora use máscara desde que nasceu, sem jamais ter se questionado sobre isso.
Após a narração do desespero da bisneta, a bisavó pede a palavra a narra tudo que viveu nos anos vinte. O confinamento, ser parte de um grupo de risco, o medo de morrer, de não rever a filha e a neta, de aglomerar-se. Passa desinfetante nos alimentos, nas frutas, nos pacotes, no chão, enquanto a neta sofre ao ver a bisavó tão estranha com estranhos hábitos.
A bisavó tem muita raiva e muito medo do presidente da república, e muita vergonha da secretária de cultura, e conta tim-tim por tim-tim para a bisneta, que a escuta, atentamente. Depois da longa narrativa, a bisneta abraça a bisavó e tenta explicar que tudo ficou no passado, que todos sobreviveram e que ela vai completar cem anos. E que fique tranquila quanto ao presidente, pois ele já faleceu há muitos anos atrás. Mas a bisavó está descrente:
- Morreu? Tudo fake. Amanhã ele ressuscita e desmente.

A bisa na pandemia


Hoje, dia 31 de outubro de 2050 bisa faz cem anos.
Preparamos uma grande festa para toda a família, mas ela amanheceu caduca. Acordou antes das cinco e fez uma super faxina no apartamento, depois arrumou armários, rasgou fotografias antigas, pediu compras por telefone, pendurou uma garrafa de álcool em gel na porta de entrada, cobriu todos os móveis com lençóis brancos, ligou para o porteiro e ordenou que ninguém entrasse no apartamento, exceto moradores. Liguei para minha mãe, que ligou para o médico que disse para que não interferíssemos. É normal pessoas em idade avançada retrocederem no tempo e guardarem apenas memórias antigas, ele disse. Mas, e a festa?
Quer dar festa? perguntou minha bisa, pode dar, mas cada convidado tem que tirar toda a roupa no quartinho dos fundos, colocar tudo num saco fechado, tomar um bom banho, passar álcool no corpo e vestir uma roupa limpa. Ninguém se aproxima de ninguém, a distância mínima é de um metro. Cada um traz seu copo e talheres, descartáveis. Se seguirmos as orientações da OMS, aceito a festa, mas com pouca gente. Aglomeração não pode, disse ela. E arrematou, autoritária e doce, como sempre: ninguém sobe de elevador, é um ninho de bactérias.
Tentamos explicar à bisa que a pandemia tinha acontecido nos anos vinte e que agora não precisamos mais ter todos esses cuidados, basta a máscara. Mas minha bisa não arredou o pé: O que vocês querem? Uma pandemia familiar? Eu sou grupo de risco, se entrar alguém aqui, eu me tranco no meu quarto.
Desmarcamos. Bisa continuou sua nova velha rotina: lavou as compras: potes de requeijão, temperos, material de limpeza, garrafas de mate, frutas, nada entrava mais no apartamento sem passar pela higienização metódica dela. E tinha que higienizar tudo de máscara e luvas pra não respirar o vírus. Parecia mais jovem, do tanto que trabalhava. Pediu por telefone provisões para muitas semanas. Lavou tudo, até as embalagens, e lavava as mãos de hora em hora. A qualquer momento pode acontecer uma contaminação ou uma chamada de vídeo, dizia, enquanto passava batom, sem acertar direito o tamanho da boca agora pequena.
Às dezoito horas em ponto correu lentamente sua corrida velhinha até a janela e gritou com sua voz fraquinha, mas convicta:
- Fooooora, Bolsonaaaaaro!
E bateu panelas, fazendo um barulho tão alto que nem parecia que vinha de braços e mãos tão frágeis.  Bisa ficava na janela fotografando tudo o que considerava “uma aglomeração”. Vou denunciar, dizia, com voz firme. Estão colocando em risco a vida das pessoas.
Meus irmãos e meus tios tentaram visitá-la, mas ela agradecia a visita pelo olho mágico  e, se trouxessem presentes, comidinhas ou até mesmo correspondência da portaria, ela pedia que deixassem do lado de fora da porta, e só abria depois que eles iam embora, de luvas, e com álcool em gel em punho, passando até nas contas e boletos. O pior é que me obrigava a fazer o mesmo, eu não podia mais receber meus amigos em casa, e quando eu saía, na volta eu era obrigada a me desinfetar toda, ou ela tinha uma crise de pânico. E quando eu saía, ela recomendava: cuidado com os animais selvagens. Estava doida. Lavava minhas máscaras e deixava de molho por horas na água sanitária, fiscalizava toalhas, panelas, armários, enquanto eu sofria por ver minha bisa querida, tão lúcida há tão pouco tempo atrás, perder o juízo.
A situação estava ficando fora do controle. Minha avó me explicou que a pandemia foi um choque na vida de todos os humanos do planeta, e não só dos brasileiros. Que até então ninguém usava máscaras. Que antes era comum pessoas sem máscaras andarem juntas em elevadores, lojas superlotadas, blocos de carnaval, tudo era aglomeração sem perigo. Estranho ouvir isso, eu que praticamente nasci de máscara, que vi poucas bocas na rua, que desde pequena guardo na lembrança os olhos das pessoas. A máscara, para mim, é como o sutiã, a gente usa e pronto. Não passa gripe, não respira o ar poluído das grandes cidades, e ainda combina com a roupa.
Minha avó foi mais além e me contou que quando era jovem, o mesmo acontecia com o cigarro, que pessoas fumavam nos elevadores, dentro dos aviões, nas salas de aula, nos bares fechados, nos carros sem ar condicionado, nos ambientes de trabalho e, pasmem,  era considerado chique, havia anúncios de cigarro na televisão, e os maços eram vendidos abertamente em qualquer jornaleiro, bar, ou restaurantes. Achei que estava exagerando, mas fingi que acreditava pois já estava cansada de viver no passado. Chorei muito, submetida a tanta paranoia.
E não era só isso. Bisa tinha pesadelos que estava numa piscina sem  máscara, tentava sair e não conseguia. Ou que queria sair e não achava as máscaras, ou que encontrava um bando de pessoas sujas dentro de sua sala. E despertava no meio da noite chorando, apavorada. Bisa não saía mais de casa, nem para suas caminhadas matinais, pegava o sol da manhã na janela, e nem ao cinema, que ela tanto gostava de ir, ia mais. Ela celular, televisão e supernet o dia inteiro.
Uma noite vasculhava o apartamento em busca de alguma coisa, perguntei o que era, e ela disse: uma caneta. Caneta, bisa? Pra quê? Temos o teclado virtual holográfico. Mas ela queria porque queria uma caneta. Deus do céu, onde encontrarei uma caneta para minha bisa? Será que alguém ainda fabrica? Consegui um lápis com um idoso que morava no nosso condomínio e desenhava à mão, como antigamente. Bisa sossegou. Desandou a escrever como eu nunca tinha visto. Escrever é realmente algo muito interessante, mas dá muito trabalho corrigir. E onde guardaríamos tantos papeis?
Daí vieram outras manias.  Comprava comida e cozinhava feito doida, como se estivesse em guerra e corresse o risco de faltar mantimentos. Fazia pão em casa, doces os mais variados,  congelava tudo e inscrevia-se em todos os cursos on line que apareciam em sua linha do tempo, no tal Facebook, que ninguém usava mais há muitos anos. Depois se esquecia dos cursos e continuava sua imensa lista de inscrições.
E não foi só. Pegava roupas que pouco usava, demanchava e confeccionava máscaras de todos os modelos e tamanhos, queria distribuir para os pobres. Eu tentava explicar que todos já tinham. Mas bisa não se convencia. Se por um lado eu a via feliz, ocupada, por outro me entristecia o fato de estar caduca.
Vamos caminhar bem cedinho? Tentei, mas ela não queria se arriscar, dizia que era grupo de risco e que não havia respiradores e leitos para todos, que davam preferência aos jovens. E lamentava a triste sorte dos médicos, que tinham que decidir quem morre e quem vive, na distribuição de vagas e respiradores nos hospitais.
Ontem à noite, ela me chamou com toda a calma, disse que não sabia em que mundo eu vivia, que queria muito que eu a ouvisse sem interromper. Sentamos, uma ao lado da outra, fiz o silêncio prometido, e escutei (gravando), então ela disse:
- “Ouvi falar da epidemia pela primeira vez no início de março de 2020. Tinha um encontro de constelação familiar e fomos, a turma toda do curso, normalmente, apenas evitando beijinhos no rosto, brincando e cumprimentando-nos com os pés, ainda achando graça. No final demos muitos abraços uns nos outros. Eu tinha uma hóspede em casa,  e recebemos várias visitas durante o fim de semana. No domingo, uma pessoa veio ao meu apartamento e disse para minha hóspede voltar correndo pra cidade dela pois e breve as estradas poderiam ser fechadas e ela, impedida de voltar.  Ela fez as malas depressa e foi-se embora, eu não disse nada, mas achei um certo exagero. Daí começaram a chegar as notícias de fora do país e ficou mais claro que era uma pandemia e que o mundo inteiro estava sofrendo.
Fiz compras pelo telefone e guardei mantimentos não perecíveis que duraram meses, paguei no cartão, com medo de faltar comida, encomendei algumas máscaras com a costureira minha vizinha e ela ria de mim, assim como as pessoas que me viam de máscara na rua. Poucas semanas depois, estava quase todo mundo mascarado, e agora a mascara é obrigatória.
Na primeira semana, acordei antes do sol nascer, e caminhei no parque perto daqui, sentindo-me estranha naquele lugar, antes tão cheio de vida, completamente deserto. Animais diferentes saíram de sues esconderijos, ouvíamos mais cantos de pássaros, até camundongos mínimos que nunca haviam sido vistos por ali.
Antes de pandemia, eu estava com crises de pânico, não conseguia sair às ruas sozinha, e quando tentava, sentia ânsias de vômito e era obrigada a voltar pra casa. Com a maioria trancafiada dentro de casa e as ruas vazias, confesso que até melhorei e comecei a sair para o parque calmamente, como se o mundo estivesse finalmente no mesmo fuso psicológico que eu.
As pessoas, que antes mal telefonavam, só mandavam mensagens por whatsapp , começaram a fazer vido chamadas, e isso virou um hábito,  eu conversava por vídeo com outras pessoas isoladas sozinhas em seus apartamentos, e assim, por videochamadas, comemoramos três aniversários e o dia das mães.
Mas os artistas resistem, e fazem lives diariamente, todos correndo e aprendendo a usar recursos de internet que estavam, antes, ainda encubados. Houve um boom de cursos, palestras, aulas de yoga, ginástica, história, música, tudo on line. O mundo virou uma telinha.
Corri para a cozinha, onde quase não entrava, e passei a cozinhar, como não fazia há décadas. Tive o privilégio de viver num tempo em que as empregadas domésticas eram mão de obra barata, podíamos pagar, inclusive muitas moravam com a gente e só iam pra casa de quinze em quinze dias, outras vieram do Ceará diretamente para nossas casas e lá moravam, tinham filhos às vezes, traziam outros parentes e a gente ia empregando nas casas de familiares. Portanto, eu mal frequentava a cozinha. Passamos, todos, a cozinhar, aprender novas receitas, arrumar armários, e fazer aquelas coisas todas que nunca sobrava tempo pra elas. Arrumar armários, rasgar velhas fotografias, tornar-se mais leves, despegando- nos de livros que jamais voltaríamos a reler, e de roupas que jamais voltaríamos a usar, guardando-as só por apego mesmo.
Mas essa fase também passou e corremos para os vídeos, filmes, séries, cursos on line, tentando ocupar-nos o maior tempo que pudéssemos. Toda essa loucura com o país nas mãos de um presidente sem a menor empatia com o povo, um homem que, ao ouvir o número de mortos aumentando diariamente, disse: E daí? Não sou coveiro.
Isso nos deixa ainda mais inseguros. Todos os dias a imprensa noticia mais quinze dias de isolamento social, fala em possível lock down, mesmo que a maioria esmagadora da população não tenha a menor ideia do que seja isso em inglês.  Uns governadores tentam flexibilizar as medidas de fechamento do comércio, outros ignoram as medidas e acabam, eles mesmos, contraindo o vírus.
Tive fases de insônia, de choro, de depressão e saudade dos amigos e da vida, acordamos sempre no dia de ontem, os prédios são desinfetados, os porteiros usam obrigatoriamente máscaras, e alguns amigos contraíram a doença, uns de modo leve e em casa, outros vindo a óbito.
Meu implante dentário provisório me causa muita aflição, como deixar alguém mexer dentro da minha boca, se a doença é contraída pela s vias aéreas? Se meu implante cair, ainda posso usar máscaras pra disfarçar.
Pra me divertir um pouco, encomendei várias máscaras para usar combinando com minhas roupas, mas como quase não saio de casa, apenas me visto, faço uma selfie engraçada e volto a usar as roupas de andar em casa, sempre de batom, pois são comuns agora as chamadas de vídeos. As mulheres estão com as raízes dos cabelos brancas, aquelas que nunca pintaram o cabelos sozinhas, o que não é o meu caso, que pinto de preto desde os dezoito anos. Mesmo assim , encomendei tinha na farmácia e chapisquei o banheiro todo.
Há dias em que meu apartamento fica um brinco, insisto em fazer a cama diariamente, como se fosse entrar alguma visita de repente no apartamento.
Depois relaxei. Amanhã faço a cama, digo pra mim mesma, ou depois de amanhã, ou sábado, se sábado vier.
Uma sensação de morte, de luto, de guerra, de fim de mundo.
Tentei olhar  a pandemia com um olhar histórico e assisti muitas palestras sobre outras epidemias, até descobrir que não foram os europeus os que dizimaram os índios das Américas, invadindo o mundo novo. Quem destruiu a os habitantes das Américas foi a varíola. Reli A Peste, vi a série Panemia, no Netflix, reli Sapiens, qualquer coisa que me desse um olhar histórico sobre esse momento difícil que estamos vivendo.
Aqui e ali, notícias de animais selvagens, ou ocultos, surgindo nas ruas desertas. Tucanos, papagaios e pássaros, até iguanas, camelos, macacos,e onças.
Recebo diariamente vídeos de macacos em piscinas de condomínios urbanos, de famílias inteiras de antas passeando tranquilamente por ruas desertas.
Alguns artistas brasileiros faleceram até agora, a maioria pelo vírus. A secretária da cultura, uma tal Regina Duarte, que foi eleita a Namoradinha do Brasil da Ditadura, primeiro desapareceu do mapa, deixando a classe artística em polvorosa, teatros e cinemas fechados sem data para reabrir, depois deu uma entrevista desastrosa dizendo:
- O mundo me ama!!!
Sobre as mortes, de milhares de brasileiros e de alguns artistas, disse, entre outras asneiras: 
- Todo mundo morre. Eu não quero ser um obituário. Vamos ficar leves.
Devia estar drogada. Quinhentos artistas fizeram uma carta de repúdio à anciã com trejeitos de menina, mas ela ainda não se deu conta de que entrou num barco furado, e que é odiada hoje pela direita, pelo centro e pela esquerda, por artistas e não artistas, por olavistas e não olavistas, perdendo a chance de entrar para a história como atriz. Ingênua a ponto de achar que ainda é secretária da cultura, quando já há um bonitão bolsomínon fazendo as sobrancelhas para ocupar o lugar dela. Um garotão debochado de olhos azuis, jovem e fortinho de academia, do jeito que o presidente gosta.
Só a Regina não sabe, mas já está num ostracismo de dar dó.
Não tenho dó, nem dela nem de nenhum outro bolsomínion, nem da imprensa, ninguém teve a sensibilidade de enxergar o traste que elegeram, com o conluio da imprensa e dos odiantes do PT. Não sabiam o tamanho do monstro. Eu sabia, tenho vídeo filmado e postado antes das eleições alertando para o perigo e pedindo para que os eleitores de Bolsonaro saíssem da minha vida, mesmo da vida virtual.
Perdi o saco de cozinhar, e comecei a pedir comida por delivery, num momento em que almoçar nos restaurantes a quilo estava tornando-se um hábito tão comum que muita gente já nem tinha mais fogão em casa. Houve uma guinada, os restaurantes, todos, fecharam, e hoje estamos cozinhando, ou pedindo quentinhas. Os maridos tiveram que colaborar nas tarefas diárias, os bons casamentos se fortalecem enquanto os casamentos estragados começam a feder, com o casal trancafiado junto dentro de apartamentos pequenos ou casas gigantescas.
Deixamos de ver os amigos ao vivo, mas refizemos contatos com pessoas antigas, que não víamos há séculos, e estamos em conato com muito mais gente. Eu fico de olho nas pessoas mais solitárias ou mais sensíveis e sempre pergunto como elas estão, e faço graça falando das minhas máscaras novas e da minha nova burca e me acham doidinha, com isso riem e se divertem.
Minha meta diária é manter-me o maior tempo que puder de pé, qualquer coisa é motivo para eu me jogar no sofá até sentir câimbras nas pernas, de tanta imobilidade.
O pior é que não tenho planos para o fim da pandemia, estou aposentada, filhos criados, estudos completados,  e pânico. O que farei dos meus dias e das minhas horas quando a pandemia passar? Acho que continuarei confinada e em isolamento, como já estava antes.
Passei pela fase da negação, quando não acreditava na proporção planetária da pandemia, passei pela fase da produtividade, quando queríamos ocupar todo o nosso tempo disponível, lendo, estudando, enfim...’fazendo alguma coisa’.
Superei a fase da tristeza profunda e da profunda paranoia, parei de chorar diariamente e a ter ânsias de vômito todas as manhãs. Tive também um período em que passava o dia inteiro ao telefone, falando sem parar com as pessoas, mesmo as praticamente desconhecidas. Pintei algumas paredes com a tinta que tinha em casa, tentei tocar violão de novo, reli os principais livros que moldaram meu pensamento e nortearam minha vida. Dormi a tarde inteira diversas vezes, com ou sem remédio, acompanhei notícias o dia inteiro, virei noites, desliguei televisões e Internet, desliguei-me de tudo, passei a ler as notícias apenas uma vez por dia, passei por todas as fases, e os domingos eternos não passavam. Sempre que acordava, dava de cara com o dia de ontem. Se eu fosse Heráclito, diria que eu me banhava no mesmíssimo rio toda manhã, há meses.
O mais desconcertante é que o Brasil é o único país no mundo inteiro que as primeiras páginas dos jornais e as chamadas do noticiário não são somente a pandemia, mas os desastres do presidente e sua equipe. Não só ignora tudo que acontece à sua volta. Pior. Quer que a economia ande, que o comércio abra, contra todas as recomendações de todos os órgãos e institutos de saúde. E contraria governadores, prefeitos, médicos, enfermeiros, ignora a pane do sistema de saúde, a falta de leito e respiradores, tudo. Vive numa bolha à parte, só pensa em si mesmo e na sua família, quase todos implicados em algum crime, de desvio de dinheiro a assassinato e formação de milícia.
Temos, neste momento, um STF enfraquecido, sem moral, sem autoridade, todo o sistema parece estar nas mãos desse lunático. Diz barbaridades, palavrões, ofende a imprensa,  as mulheres, defende torturadores, nunca imaginei viver isso. Participei do Movimento Diretas já, após a ditadura, e hoje vejo esse louco, eleito pelo povo, ser defendido por um grupo grande de pessoas. Incompreensível tudo isso.
Para não enlouquecer, vivo um dia de cada vez, remando de acordo com a maré. Critico e xingo o presidente pelas redes sociais porque sei que ele se baseia nelas.  É o que posso fazer, por enquanto.
O número de mortos e infectados só faz crescer. O número de leitos disponíveis nos hospitais só faz diminuir. Como posso, agora, relaxar meus cuidados?
O que me consola é que eu era jovem na revolução sexual e agora estou velha na pandemia. Já pensou que horror o contrário? Velha na revolução sexual, sem poder dar pra ninguém e jovem na pandemia, tendo que ficar trancafiada em casa, sem nem poder beijar na boca.
Semana passada foi a entrevista infeliz com a secretária da cultura, cantou o hino da ditadura, balançou a cabeça pra lá e pra cá jogando os cabelos, pensando que ainda tem trinta anos, com aquela vozinha de moçoila irritante. Não quis homenagear os mortos famosos, artistas como ela, atores, músicos, intelectuais que morreram, teve a audácia de dizer que a secretaria dela não é um obituário. Disse que o presidente é muito educado, divertido, e outras asneiras. Os jornalistas imprensaram a Regina contra a parede, ela chamou os seguranças, se descabelou toda e a entrevista foi interrompida no meio da primeira aparição pública dela, após a posse. No final do vídeo dá até pra ver uma mãozinha que ia tampar a câmera. Disse que morrer é normal. Só faltou completar com um E daí? , como o presidente. Mal sabe ela que já subiu no telhado, como se dizia naquela piada antiga. Não dura mais nada no cargo, será sua derrocada, poderia ter terminado de envelhecer como a namoradinha do Brasil, mas optou por morrer em vida como a noiva mórbida de um presidente que vai entrar pra História como o mais canalha. Perdeu o contrato com a Rede Globo, um contrato de cinquenta anos, pra você ver como ela é velha. E vai passar o resto da vida ganhando a pensão do pai militar, como marido ruralista, olhando bois no pasto. Nem os bolsomínions genuínos querem ver a cara dessa desalmada. Que papel ridículo, que falta de noção. Que desgosto pro nosso Brasil, não é, querida? Um país tão rico, tão alegre e promissor, apesar das desigualdades imensas que estão vindo à tona. Essa é a minha esperança. Que tudo isso que estamos passando sirva para alguma coisa.
E não falo só do preço que pagamos em vidas, mas também em tristeza, lágrimas, saudades, depressões, um preço que nunca quitaremos. Quem está vivo agora nunca vai esquecer tanta miséria humana. Miséria pior do que a de falta de recursos, pior que a fome e o abandono. Um desprezo imenso pela vida, isso é o que estamos presenciando. Sei que o desprezo sempre esteve aí, mas agora ele é celebrado e postado nas redes. E que susto levamos, vendo pessoas das quais gostávamos defenderem a abertura do comércio e justificarem a perda de vidas, desde que o capital não deixe de girar. Se morrerem trabalhadores, há muitos desempregados para substituí-los, é o que pensam. E abrem covas no país inteiro. Covas e mais covas, para o afrouxamento do distanciamento social, do confinamento. De doer, isso.
Outra coisa que me consola é que eles, presidente, ministros, secretários, governadores, deputados, senadores, prefeitos, todos brigam entre si. Quando eu era mocinha, achava que tinha que pegar em armas e fazer a revolução. Hoje, que estou velha, é diferente. Não vamos pegar em armas. Os políticos se devoram entre si e posso assistir sentadinha no meu sofá, comendo pipoca,  a derrocada de cada um deles, mas até quando? Tenho mais de sessenta anos, será que a pandemia vai durar muito tempo? Estarei viva no final de tudo?
Estou muito triste. Há quatro meses não vejo minha filha nem minha neta. Imagina o que é isso? Minha neta já cresceu oito centímetros e eu não vi. E o que é pior: não sei quando voltarei a vê-las. Nem sei se voltarei a vê-las.  É como se eu estivesse em outro mundo, uma sensação de morte muito, mais muito triste. Viveremos uma “nova normalidade”? Como será esse normal, estarei nele? Tenho muito medo. Mas sei que o medo é normal. Quem não está com medo nesse momento está fora do ar, negando, doente. Quero abraçar minha filha, minha neta, ela só tem onze anos. Queria tanto vê-la adulta, mocinha, vou sobreviver a tudo isso? Nem tenho medo de morrer de vírus, mas de tristeza.  Tenho medo do presidente, tenho medo de seus eleitores, estão todos soltos, andando pela rua, com tanto ódio no coração. Bolsonaro vai acabar com o Brasil. E você, quem é você? Obrigada por me escutar. Você me lembra muito minha neta, que saudade dela”, concluiu. Não fossem acontecimentos de décadas atrás, parecia perfeitamente lúcida.
Olhei nos olhos dela, e disse, com calma:
- A senhora é minha bisa querida, tudo isso já passou. Minha avó tá ótima, minha mãe também. A senhora acabou de completar cem anos! E com saúde, com amor. Bolsonaro já morreu há décadas. Houve muitos presidentes depois dele.
Minha bisa balançou a cabeça e me olhou com seus olhos de gelatina, olhos poídos de olhar, amorosos. Não sei se me reconhece. Abraço-me a ela, que corresponde, alisa meus cabelos, balança a cabeça e diz, com ares de senhora sábia:
- Bolsonaro? Morto? Tudo fake, minha querida, amanhã ele ressuscita e desmente.