O Velho
O velho deu pra fumar. Logo
agora que cigarro é pior que cachaça, vodka, uísque e remédios de tarja preta.
Ontem no táxi o chato do motorista falava: olha aí nesse carro preto do lado!
Uma moça! Fumando! Não deve nem ter dezoito anos (devia ter trinta). Aposto que
os pais não sabem. Aonde vai esse mundo? Pobre do cigarro, caiu na maldição com
tanto cachaceiro dando sopa por aí. O velho deu pra fumar.
Quando não está fumando nem
trancado no quarto dormindo, arruma as coisas, parece que se prepara pra viajar.
Já eliminou fotos antigas, quadros, muitos guardados, até joias distribuiu pros
sobrinhos, aqueles que ainda o visitavam uma vez por ano, meia hora, se tanto.
Só não mexe nos livros que
ocupam todas as paredes do apartamento. Não me deixa limpar a poeira que se
acumula nas estantes de madeira boa. O apartamento do velho está se
desocupando. Ele não enxerga mais miudezas como manchas escuras nos cantos das
paredes meio descascadas, tinta velha, umidade, ciscos, poeira sobre os móveis,
pequenas sujeirinhas que, juntas, inundam o apartamento. Dos livros sai um
cheiro de mofo. Acho que o velho perdeu totalmente o olfato. O apartamento do
velho sempre foi um brinco, quando o velho era moço. Organizado, meticuloso,
asseado. A geladeira sempre cheia, arrumada e limpa.
Faz falta uma família,
filhos, netos, gente que visitaria. O velho não casou porque não quis. Mulheres
sobraram às pencas. O velho não casou porque gostava de mulher demais. Desde
jovem, essa obsessão pelas mulheres: novas, velhas, gordas, burras,
inteligentes, ricas, pobres, louras, morenas, ruivas, falantes, quietas, vi
pencas acordando no apartamento.
Vi de manhã mulheres de
todo tipo, e também meninas, filhas dos amigos do velho, mulheres dos amigos do
velho. Amigas das namoradas do velho.
O velho já foi festeiro.
Quando novo: atacava com um manso e desprotegido olhar, suspiros, e um silêncio
de homem culto e inteligente. As mulheres não resistiam, nem as bem casadas: ao
silêncio de um culto inteligente. Colecionou mulheres de todos os tipos e tamanhos,
despertou amor, paixão, causou separações, choros, brigas. Presenciei muita
coisa, tanta que até deus duvida. Da cozinha americana dava pra ouvir tudo,
mesmo se cochichavam.
O velho envelheceu de
repente. Eu vi. Até outro dia ainda recebia telefonemas sussurrados e respondia
com aquela voz de homem novo. Parece que foi ontem que dormiu com a filha de
sua melhor amiga. Foi um quiprocó, ouvi conversas inteiras, uns achando graça,
outros criticando.
Hoje o velho não tem filhos
nem amantes, sequer amigos. Durante uma década só falou em ter filhos. Jogava
verde, na esperança de que alguma deixasse a gravidez vir, mas o filho desejado
nunca veio. O velho não engravidou ninguém.
Vi mulheres chorarem no
apartamento, vi esposas de amigos do velho frequentarem as festas e depois
voltarem, sem seus maridos, fisgadas pela sedução do velho, quando era moço.
Vi alguns de seus amigos
envelhecerem e afastarem-se do velho, que permanecia moço. Não ficava calvo,
não ficava gordo, não criava barriga, nem nasciam fios ou tufos brancos no
cabelo negro e cheio do velho.
O velho estendeu a mocidade
até onde pôde, cercado por mulheres variadas, sempre culto, bem vestido e
sedutor.
O velho envelheceu numa
semana de março. A velhice chegou sem bater na porta. Ele ainda era novo quando
sentiu-se mal num sábado, escorregou no banheiro, não conseguia levantar-se.
Quebrou a perna no tombo. Gemeu alto, me acordou no meio da noite, chamei a
ambulância, esperamos juntos com calma, ele de olhos fechados de tanta dor.
Assustou-se porque sabia que os velhos saudáveis morrem de tombo. Dias depois
voltou do hospital sozinho, e pum, já era um velho.
Não o reconheci quando
entrou na sala do apartamento. Parecia a caricatura de si mesmo. Perdera a cor
da pele, o brilho dos olhos, o andar elegante, a voz masculina e forte. Perdera
os dentes de trás da parte de cima da boca. Mais magro, voz fraca, passos
inseguros, medo de cair de novo, cabelo ralo.
Fiquei espantada ao ver o
velho bem velho, assustado com a velhice, para a qual não se preparara.
Observei seu andar vagaroso, seu jeito velho de esbarrar nas coisas como se não
as visse mais com a definição de quando era moço.
Ouvi o silêncio do telefone
indicando que o velho agora não tinha família nem amigos. Vi com meus olhos o
velho tentar sair sem bengala e voltar, testa ferida, rabo entre as pernas, e
não sair mais. E agora deu pra fumar. Varro as cinzas, tiro os fios brancos que
caem no travesseiro, são muitos. Seu couro cabeludo está cor de rosa claro, cor
de bebê. Uma careca redonda começa a se formar no alto da cabeça do velho.
Passa horas fumando
sozinho, olhando pela janela do apartamento. Penso nas dezenas de telefonemas
insistentes que ele não atendia, quando era moço. Penso nas meninas, nas
mulheres, na coleção de amantes infelizes do velho. Penso em quantas ouvi
chorar, muitas.
Quando era moço, saía bem
cedo e em silêncio pro trabalho, deixando alguma moça sozinha na cama,
sobressaltada, sem entender. Eu servia café, leite, pão torrado, queijo, suco
de laranja, e via o rosto delas, uma a uma, as coitadas. Muitas voltavam,
insistiam. Ou ele dormia tanto que as mulheres acabavam por ir embora sem
despedidas nem promessas de outro encontro. Mal saíam, ele levantava bem
disposto e pedia que eu fizesse café forte.
Quando saio pra comprar comida
ou cigarro, se demoro, ele se aflige. O velho não gosta de ficar sozinho no
apartamento. Não ouve os sons pequenos, não enxerga pequenos números, confunde
os alimentos, desorienta-se quando não estou por perto.
Precisa de mim para tudo,
até banho dou no velho, lavo as pelancas, ensaboo a pele seca, enxugo as
manchas. Até pra fumar, o velho depende de mim. As mãos tremem. Sou eu quem
acende o cigarro, quem dá o primeiro trago para certificar-me de que está
aceso, e passo para o velho, que fuma sozinho olhando pela janela. Os dentes
ficaram amarelados pela triste combinação de velhice e nicotina.
O velho não sabe mais
controlar seus gastos e seu dinheiro. Sou eu quem vai ao banco mensalmente
retirar sua pensão, que não é pequena. Depende tanto de mim que até me deu a
senha da conta, confia. O velho quer o
dinheiro em casa, para não ter que ir nem ao caixa eletrônico. Retiro sempre
algum pra mim, claro, que mereço. Raramente pego nota alta.
Sei que o velho pensa que
pode morrer a qualquer hora, pelo jeito que se desfaz de suas coisas, de modo a
não dar trabalho aos que vão seguir vivendo. Velho fumando é um problema, deixa
cair fagulhas nos lençois, no tapete, em si mesmo. Deixa cair cinzas pelo
apartamento, erra a mira do cinzeiro. Fuma e tosse. Tosse e fuma. Toma uma
batelada de remédios. Fiz lista com horários e preguei na geladeira com letras
bem grandes, mas o velho se esquece e sou eu quem tem que regular esses
comprimidos todos.
Sei que tem medo de morrer
sozinho, sei pelo jeito como arregala os olhos poídos de gelatina quando
preciso sair. Sei porque acorda tossindo no meio da noite e me chama. Urina no
pijama, o velho. Tenho que trocar a roupa de cama, virar o colchão pelo avesso,
ajudá-lo a trocar de roupa, e ainda acender um cigarro, esperá-lo fumar para
que não se descuide e se incendeie, e só então volta a dormir.
O velho está muito sozinho.
Deprimido, velho e sozinho. Nenhum parente visita, nenhum amigo telefona,
nenhuma mulher dá as caras, das muitas que frequentaram esse apartamento
durante décadas. Algumas voltaram durante anos, esporadicamente, alimentando
esperanças, acho. Talvez tenham envelhecido antes dele. Outras casaram, e
voltaram em festas com seus maridos, tiveram filhos, os filhos cresceram. Com o
tempo todos foram se afastando, mesmo os amigos mais próximos, que montaram
família, tiveram netos, tornaram-se antigos.
Essa noite o velho me
acordou com gritos fracos de velho, pediu água, gemia. Suava, gaguejava,
tremia. Pediu cobertor. Eu cobri o velho, a noite estava muito quente, mas não
era febre. Coloquei o termômetro, dei calmante, tentei conversar, mas ele já
não ouve direito, tentava sorrir um sorriso seco, voltou a dormir de boca
aberta, roncando fraco, respirando com dificuldade. Tenho muita pena do velho.
Amanhã acordarei mais cedo
que ele, sairei pé ante pé com minha mala, que já está pronta, e não voltarei.
Não saberia o que fazer, sozinha com um velho morto.